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Opinião
19/07/2010 - 12h11
Ninho familiar: lugar de acolhimento
Marlene Waideman
 

O funcionamento das famílias tem mudado – está lá, mais detalhado no texto O que é, de fato e por lei, uma família, publicado aqui n’O Guaruçá.

E como sinal da contemporaneidade, os novos contornos familiares também produzem um certo embaralhamento dos papéis e funções familiares tradicionais e, não raro, deixam os responsáveis pelas crianças e pelos adolescentes bastante aturdidos quando se percebem com grandes dificuldades no trato com seus filhos e, em consequência disso, algumas são as atitudes mais frequentes. Há famílias que buscam respostas num serviço de atendimento psicológico com a questão que encerra a seguinte configuração: “não dou mais conta de meus filhos, não sei o que está havendo, sempre tiveram tudo que quiseram, onde foi que errei?”; outras buscam amparo nos instrumentos sociais e legais, como Conselho Tutelar, os promotores e juizes de Infância e Juventude; outras ainda partem para a pancadaria quando os filhos já não lhes atendem mais; e há aquelas famílias que deixam ficar para ver como é que fica.

No consultório, este tipo de queixa, em geral, é apresentada por famílias aparentemente igualitárias, democráticas, o que em tese, abriria um horizonte de possibilidades de relações familiares bastante construtivas. Entretanto, muitas vezes, num contato mais aprofundado, percebemos que essas mesmas famílias mantêm alguns aspectos mais tradicionais, como a expectativa de uma obediência dos filhos em relação aos pais, quando estes começam a estabelecer algumas normas para o adolescente. Mais ainda, é comum percebemos, pelas falas dos pais, que estes filhos desconhecem o que seja limite, o que seja um “não”, especialmente quando diz respeito ao “querer”, ao “ter”. São filhos que tiveram um atendimento caracterizado exatamente como os pais verbalizam na primeira queixa “...sempre tiveram tudo que quiseram...”. Então, porque agora não haveriam de querer ou ter, seja lá o que for?

Nos serviços sociais e judiciais de atendimento, vemos pais – ou cuidadores – que, por não terem condições financeiras de arcar com o auxílio de um profissional que os ajude a retomar para si os papéis e funções que lhe são inerentes, buscam a figura da autoridade externa para suprir o domínio e controle que já não têm mais junto aos filhos, se é que algum dia tiveram. O mesmo acontece com aqueles que tiveram filhos por meras circunstâncias biológicas mas que, de fato, nunca desejaram as responsabilidades dos correspondentes papéis e ao buscarem a autoridade do Estado, é uma forma de dizer “tentei de tudo”. O Estado (através dos dispositivos como Assistência Social, Conselho Tutelar, Varas de Infância e Juventude), ao tomar só para si esta responsabilidade, já avançou os pés pelas mãos em várias de suas condutas equivocadas em tempos passados e, ao mesmo tempo, não deu conta de responder e nem dar apoio adequado às crianças e adolescentes que eram retiradas de suas respectivas famílias. Já tivemos um período de um amontoado de filhos de ninguém nas chamadas casas-abrigo.

E a família que parte para a pancadaria quando não dá conta de exercer seus papéis e funções junto às crianças e adolescentes que deveriam estar sob seu zelo e cuidados? É em referência a estas que o governo envia ao Congresso o projeto que proíbe pais, professores e cuidadores de aplicar castigos físicos a crianças e adolescentes. Há que considerar que quem perde o controle são os adultos ao não darem conta de cumprirem os seus papéis e funções. Certamente não será com pancadaria, tapinhas ou tapões “permitidos” que se vai resgatar a capacidade de cuidador e atacar a causa do desrespeito a que estes se sentem sujeitos. Algumas dessas famílias não desenvolveram, não assumiram, por várias razões, as suas funções.

Já tivemos no Brasil A roda dos expostos, mencionada num arejado texto, A roda dos enjeitados, aqui mesmo n’O Guaruçá, e não podemos nos esquecer que, dentre várias mudanças, uma importante modificação a que assistimos é a queda de uma certa ilusão da família somente como reduto de amor. O afeto, que tem ganho o status de valor jurídico, mostra seu outro lado. Tem chegado a público situações de violência, que antes eram contidas e outras vezes ficavam escondidas em um pacto de silêncio, o que perpetuava a imagem idealizada da família nuclear no imaginário das pessoas.

A família certamente mudou e, especialmente, a família que teve a mídia como uma espécie de parceira no processo de educar/formar seus filhos; e vamos reconhecer que foi a maioria delas. Não podemos nos esquecer o quanto nossas crianças foram e são ainda – apesar das creches e escolinhas – deixadas em frente a um aparelho de televisão, seja por negligência, descaso, comodidade dos pais, seja por absoluta falta de outra modalidade de babá/cuidador diante da necessidade dos pais ou responsáveis buscarem fora o sustento para essas mesmas pessoas.

Na nossa sociedade contemporânea ocidental, a baixa tolerância à frustração, a tendência à passagem ao ato por falta de freios da impulsividade em detrimento de condutas reflexivas, e ainda a banalização dos vínculos afetivos – apenas para mencionar alguns temas – têm como concomitância um arsenal de outras mudanças, como a alteração da ordem econômica, do quadro social e dos papéis sociais, os quais, por sua vez, alteraram comportamentos, expectativas, objetivos e realizações individuais. Mais especificamente no espaço familiar, algumas outras mudanças substanciais também ocorreram e ajudam a pensar a caracterização dessa nova família: as mães, assalariadas e exaustas com uma frequente dupla ou tripla jornada de trabalho, os pais aturdidos com novos papeis compartilhados ainda não assimilados, filhos não mais “obedientes” e sim exclamativos e socialmente descomprometidos.

Nessa mesma sociedade fragmentada e egocentrada, proliferam argumentos relativos à compreensão do sujeito e, consequentemente, dos espaços que o constituem, sendo a família um desses espaços privilegiados. Ao mesmo tempo que esses argumentos trazem questões importantes a serem debatidas, também encontramos análises simplistas ou equivocadas que decretam a falência e a morte da família, ou até mesmo a defesa da velha palmatória como forma de educar. Esses diagnósticos se baseiam em avaliações parciais ou traduzem grandes dificuldades para assimilar que os tempos são outros e que não há como voltar na roda do tempo.

A transformação da organização familiar tem acontecido ao longo do tempo e nenhuma dessas transformações foi suficientemente capaz de gerar a destituição da família como lugar de acolhimento e formação das subjetividades e é assim que elas – as famílias – continuam a ser caracterizadas: o ninho. A família como um grupo que integra contextos mais amplos, como a comunidade na qual se insere, tem como uma de suas funções assegurar a continuidade das relações.

Nesse sentido, se os membros que originalmente compuseram essa família como um ninho, de alguma forma já foram afetados por aqueles atributos presentes na sociedade moderna, não há, creio eu, como ficarem absolutamente isentos da possibilidade de os assimilarem e processarem – seja lá de que maneira for, e os transmitirem à próxima geração, e talvez ainda além. A retomada da família como um ninho, neste mundo contemporâneo, não tem mais como ser por meio de palmadas "permitidas", nem com autoridade discricionária, mas com diálogo: aquilo que exige falar, mas também ouvir e estar atento, muito atento, e desde muito cedo, às nossas próprias condutas diante das reações de frustrações de nossas crianças quando estas não conseguem o que querem.


Nota do Editor: Marlene Waideman, residente em Ubatuba, é psicóloga, com formação clínica, Profa. e Dra. com experiência acadêmica na área de pesquisas com enfoque na família.

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