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Opinião
26/07/2010 - 11h18
La droga dura, lo que dura, dura
Marlene Waideman
 

Num congresso sobre promoção da leitura, realizado em 2009 na cidade de Lisboa/PT, o filósofo espanhol Fernando Savater advertiu para os perigos da leitura, frisando que “ler é uma droga dura” e justifica que, ao contrário dos outros vícios, que abandonam os homens – e não o oposto – à medida que estes envelhecem e deixam de ter capacidade para eles, “o vício da leitura torna-se cada vez mais grave”.

É bom aqui esclarecer que os termos droga dura ou macia não é o mesmo que dizer droga legal ou ilegal. Drogas, todas podem causar vício. Mas a diferença entre uma droga dura e uma droga macia é que aquela causa dependência física e psíquica, enquanto uma droga macia causa dependência, que pode ser só no nível psíquico ou só físico. Drogas duras: é o termo empregado para se referir aos opioides (morfina, heroína etc.), ao álcool, à cocaína ou as anfetaminas. Drogas macias: é o termo aplicado geralmente aos derivados do cannabis (maconha, hachís etc.), à cafeína; no geral, o termo droga macia aplica-se a substâncias cujo consumo não implica padrões de comportamento social desadaptativos. Esta distinção é empregada tanto no discurso oficial como na fala informal. Curiosamente, porém, algumas drogas macias estão proibidas na maioria dos países, enquanto drogas duras podem ser adquiridas (mesmo que com restrições) na maior parte do mundo.

Introduzi estes conceitos não para falar dos estragos físicos, emocionais e sociais que elas – as drogas – causam no indivíduo e, em muitos casos, mais ainda nos que os rodeiam, mas para falar de um e-mail que recebi de pessoa querida. Neste e-mail foi-me relatado que o ser amado havia lhe dito: você é minha droga dura. Estava dizendo, portanto, que tinha com ela uma relação de dependência física e psíquica e que ela era seu objeto de vício.

A relação de dependência física e psíquica, permeada pela emoção, sem a disposição do racional, acontece em períodos bem específicos de nossa vida: quando somos bebês, na relação materna – ou com o principal cuidador, e quando nos apaixonamos. À medida que amadurecemos, paralelamente, vamos construindo relações onde há uma distribuição na linha do tempo de contatos predominantemente permeados pela emoção e contatos predominantemente permeados pela razão. A expectativa social, que clama pela objetividade, e o próprio cotidiano que nos impõe e exige a lógica da sobrevivência, faz com que os aspectos cognitivos se desenvolvam e passem a gerir nossas relações e contatos cada vez com mais racionalidade.

E quando acontece a paixão... ah! o “outro”, aquele por quem nos apaixonamos, é a imagem ideal do que nos provê e no qual o encaixe é perfeito. Há a sintonia de interesses e, principalmente, a compreensão. Podemos dizer, então, que estamos apaixonados; pronto, encontramos a alma gêmea! Nos sentimos no ’céu’, e na excitação do encontro com o outro, retomamos a sensação impressa na nossa matriz de relações – aquelas dos primeiros tempos de vida, de fusão total com aquele que nos provê. E facilmente projetamos no ser que encontramos, a possibilidade de reviver o estado de nirvana, a paz, a felicidade vivida em nossa relação primordial. Este estado – que identificamos como paixão – acontece na grande maioria das pessoas e pode ser mais intenso, ou menos, em função da disponibilidade individual.

Nesta vivência da paixão, além de todas as delícias e encantamentos, há também um estado alterado da consciência porque dificilmente conseguimos ver o alvo de nossa paixão como ele realmente é. Começam a surgir, então, sentimentos negativos por ele não agir da maneira que queremos e, mais, que imaginamos que agiria. É o desencanto! Começam as críticas em relação às atitudes do outro porque não são equivalentes às do nosso ’fantasma’; o outro não nos provê como nos provia o ser de nossa relação primordial. Frequentemente, o que vem em seguida, é ficarmos ressentidos por não estarmos mais recebendo a compreensão que o desejo de completude nos leva a requerer. Está aí presente ainda uma forte conexão emocional, porém não mais agradável, e mais próxima do ’purgatório’ ou do ’inferno’.

Neste ponto, geralmente a relação fica difícil: ou passamos a ver o outro como ele realmente é e nos perguntamos se o aceitamos como tal, ou continuamos na tentativa de nos relacionarmos com o “fantasma” que projetamos. Se conseguirmos o próximo passo das relações, há grande chance de, no arrefecimento da paixão, termos como saldo o amor sereno e compreensivo, o carinho, alicerces da constância das relações afetivas bem construídas, ainda que isso não nos imunize do aparecimento de mazelas menores, mas aí será como em qualquer inter-relação humana com forte presença de afeto.

Em contraposição, se prevalecer a relação com um fantasma, muito provavelmente o falar e ser ouvido e compreendido vai deixando de acontecer e sendo substituído por sentimento de vazio, de solidão, de abandono. Vai acabando a disponibilidade interna para cuidar do relacionamento por sentirmos que não somos ouvidos, não temos a importância que imaginávamos que teríamos. A ligação afetiva existe e é forte, mas o vínculo foi afetado e a intimidade, caso tenha havido, vai se desfazendo e essa lacuna é insuportável. Será gerado o tal diálogo do surdo-mudo com o cego: um não pode vocalizar e o outro não consegue ver a linguagem de sinais: falamos a ninguém e não ouvimos realmente o que o outro nos diz. A emoção é muito intensa nesses falsos diálogos. E aí há que se perguntar: é possível falar de emoção para emoção? Emoção escuta emoção? É neste momento que muitos casais buscam ajuda de um profissional que, na maioria das vezes, vai intervir nessa situação como um tradutor e facilitador das linguagens que não estão sendo acessíveis um ao outro.

Sabemos que o amor ressentido pode dar origem à raiva, ao ódio, indicador evidente de que a ligação emocional com o escolhido ainda continua muito presente. Droga dura?

Neste mesmo congresso sobre leitura, Fernando Savater também disse: “A maioria de nós vive dentro da sua própria cabeça e os livros metem-se diretamente conosco dentro de nós mesmos”.


Nota do Editor: Marlene Waideman, residente em Ubatuba, é psicóloga, com formação clínica, Profa. e Dra. com experiência acadêmica e pesquisadora com enfoque na família.

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