Dar-se o direito de ser egoísta, viver um pouco, nem que seja entre quatro paredes por um fim de semana apenas. Saber que a fome e a sede matam o corpo mas que às vezes a alma morre antes, de tédio e infelicidade. Então, numa atitude adolescentemente umbilical, fechar as portas aos clamores do mundo para um jantar que alimente a alma, que instigue o intelecto, que energize o corpo. Entregar-se às delícias da satisfação das necessidades básicas de comer e beber, saboreando o amor e homenageando a vida. Sopa - natural como viver, simples como respirar, intuitiva como amar. Primeiro, as compras: legumes (a seu gosto) e temperos. Pão. Azeite de oliva e sal. Uma vela, uma flor, duas taças. Um vinho. Total da conta: é pouco, infinitamente menos que um jantar num restaurante, mas o seu valor no tempo não tem preço. A dois na cozinha, o prazer de transformar ingredientes em alimento para o corpo e para a alma envolve o intelecto também - improviso, intuição, carinho, auxílio mútuo. Uma aula de paz. Um movimento delicado, momento de sublime poder: amor alimentado, literal e virtualmente. Picar os legumes enquanto se toma o vinho, acertar os temperos enquanto se relembra momentos, fechar a panela de pressão para colher carinho enquanto se aguarda o tempo certo. Que, de improviso, avisado pelo cheiro bom de sopa pronta, nunca é cedo ou tarde: apenas é. Pão e vinho, alimentos sagrados e eternos, acompanham o prato fundo de fumegante e perfumado creme que sabe sutilmente a azeite e maravilhas. Simplicidade, um luxo para poucos. Olhares, beijos, risos, esperança e – por que não? – algumas lágrimas levemente salgadas, servidas por olhos que olham como se vissem tudo pela primeira vez. Olhos de curiosidade madura sobre sensações novas, a cada vez renascidas, a cada dia relembradas. De alma aquecida, intelecto abastecido e corpo refeito, lavar a louça em par para depois deitar-se em lençóis recendendo a lavanda e sentir, devagar, os efeitos sublimes do vinho irem ditando os movimentos. A vida pode se mostrar de várias formas: fluida e quente como uma sopa, prazerosa e viciante como uma taça de vinho... mas é acima de tudo simples e imprescindível como um bom pedaço de pão. Nota da Autora: Este texto faz parte do Exercício Criativo - Comer, Beber e... (Clique aqui para saber mais.)
Nota do Editor: Vany Grizante (vanygriz@gmail.com) é arquiteta e escritora em São Paulo, SP. Escreve no site "Recanto das Letras" desde 2007. Publicou o livro "Abelhas sem Teto e outras crônicas" pela Editora All Print e participou da coletânea "Universo paulistano vol. II" da Editora Andross, ambos em 2010. Sua tese de mestrado sobre ambiente de trabalho na indústria encontra-se disponível para download no site: www.teses.usp.br.
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