É tempo de amoras. Enquanto tinjo minhas mãos ao catá-las, saboreio antecipadamente o gosto da geléia que será feita, pela primeira vez, utilizando a máquina elétrica. Em geral, faço geléias no fogão a gás. E como o pensamento “parece uma coisa à toa e como é que a gente voa quando começa a pensar” simultaneamente antecipei um tempo de netos, quando prepararei biscoitos recheados com as futuras geléias e o tempo da minha infância, quando não havia tantas máquinas elétricas. O futuro e o passado ali, no mistério da alquimia culinária e uma culpa: sou também um agente de exploração das riquezas naturais. Não preciso de geléias de amoras e elas precisam de gás ou eletricidade ou lenha. Espantei a culpa e um inseto guloso com o mesmo aceno de mão. E escolhi pensar nos netos que ainda virão. O dia da criança está próximo! E como mudou! Quando pequena, no dia 12 de outubro, eu ganhava, às vezes, uma folha de bonecas de papel pra recortar, ou um pirulito, ou um livrinho pra colorir, um envelope de figurinha... Um só, mas, mesmo assim, era muito bom. Enquanto a geléia se faz sem mim, folheio o recém chegado catálogo de um site famoso. Na capa, uma criança sorridente. Nas duas primeiras folhas a lembrança do dia da criança. Em seguida, seus produtos. Quem já presenteou uma criança com o presente desejado sabe qual é uma das grandes maravilhas da vida: a alegria de uma criança. Ela dá cambalhotas, ela te abraça, pula, os olhos saltam de felicidade. E quem não quer ser o responsável por tanta alegria? Folheio o catálogo procurando as ofertas para os netos que ainda não tenho. E o susto: em 40 produtos, apenas oito dispensam o uso de eletricidade. Sigo folheando com os olhos arregalados e confirmo: com a exceção de três conjuntos de louça e 12 livros, todas as outras 70 ofertas exigem pilhas, baterias, eletricidade. São 12 sugestões de livros contra 36 de DVD. Dos livros, nenhum recomendado para crianças, três para jovens. Dos DVDs, 21 infantis. Os números do planeta são impressionantes. Se o mundo todo consumisse exatamente a mesma quantidade que os EUA consomem, o planeta explodiria. Não daria conta. No entanto, as crianças, me parecem, preferem mudar de roupas das bonecas virtuais do que as de papel, aquelas que muitas vezes a gente mesmo desenhava. O odor da geléia começa a tomar conta do ambiente. Será que vai ficar boa? Será que meus futuros netos ficariam felizes em ganhar um jarrinho de geléia de amoras no dia da criança? O tempo pode mudar, os objetos de desejo também, mas, tenho certeza de que hoje eu repetiria com meus sonhados netos o que fiz com os filhos: o dia da criança ser verdadeiramente das crianças. Um dia com eles. Se sol, ao ar livre. Se chuvoso, eu contaria uma história em voz alta, veria junto com eles seu filme predileto, jogaria o seu game. Daria a eles a única coisa que só eu posso dar: o meu amor, o meu tempo e a minha atenção. A máquina apitou. A geléia deve estar pronta. Fecho meus pensamentos com o significado etimológico da palavra “consumo”: destruição (o fogo consome a floresta, exemplifica o dicionário). Vejo se a geléia está no ponto. Não, não está. A máquina não fez o ponto de geléia. Irá para a panela e recomeçarei tudo. Sempre há a possibilidade de se fazer certo da próxima vez! Nota do Editor: Angela Carneiro é escritora, pedagoga, professora aposentada da UFRJ, mestre em educação e colaboradora do site Brincando na Rede.
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