A pequena Raissa, agora com três anos, jamais saiu de lá. Ainda que quisesse, não daria: as janelas estão chumbadas às grades grossas de ferro e mesmo a porta que dá acesso ao galpão do andar de baixo permanece trancada durante todo o tempo. Por ali há outras crianças como ela. No meio da noite, sempre uma delas chora. Se de fome, de frio ou de medo, nunca se saberá. Para aqueles pequenos, tão cedo privados da própria liberdade, lá fora é um lugar que, de repente, nem existe de verdade. Ou é, no mínimo, muito incerto. Afinal, nenhum deles atravessou, até hoje, qualquer um daqueles portões imensos. Também nunca viram pessoas andando nas ruas e nas calçadas, como é de praxe. E tampouco desconfiam que na cidade imensa que se ergueu à beira-rio existem parques, praças e zoológicos - essas pequenas coisas simples e belas que costumam atrair e encantar crianças como elas. Entretanto, Raissa assegura, singelamente convicta, que já esteve em muitos lugares. E que lá conheceu príncipes, dragões e fadas. Que perambulou por castelos, túneis e reinos maravilhosos e que, por mais de uma ocasião, se descobriu perdida no meio de florestas escuras e mágicas, com seus monstros terríveis e caçadores bons. E tudo isso sem jamais ter botado seu pezinho lindo de princesa pra fora dali... O caso é que a menina, como tantas e tantas outras da idade, adora ouvir histórias. E ela, mais do que qualquer uma, parece de fato carecer de histórias - como, aliás, quem precisa, desesperadamente, do próprio ar que respira. Ela gosta mesmo de histórias. De qualquer história, seja ela qual for. Porém, há certos dias que Raissa, lá no fundo da sua alma, deseja com todo ardor ouvir histórias diferentes. Que falem de crianças de carne e osso, como ela e suas coleguinhas de infortúnio. Só que de crianças que tenham uma vida simples, uma casa de verdade, com um jardim bem verde, que é pra poderem correr à vontade, sem parar, até caírem exaustas de tanta fadiga. E sujas de terra, dos pés à cabeça. Mas que sejam livres! Para aqueles meninos e meninas que, como Raissa, nasceram e viveram sua vidinha toda, até aqui, atrás das grades do Presídio Feminino Madre Pelletier, em Porto Alegre, aquilo pode soar como pura fantasia. Mas só assim é que elas conseguem construir um imaginário próprio onde liberdade e alegria não sejam meras palavras ocas e sem sentido. Elas são filhas de mulheres presas que engravidaram durante as visitas conjugais de seus companheiros. Por isso, nasceram e cresceram ali. Atrás das grades, como as mães. Na cela ou pátio onde as detentas tomam sol é que a maioria delas deu os primeiros passinhos e pronunciou as primeiras palavras. E como será que se dá o vínculo dessas crianças do cárcere com a vida lá fora? É pelos livros, apressa-se em explicar uma das voluntárias do Projeto Liberdade pela Escrita, criado e mantido por estudantes dos cursos de Letras e de Pedagogia das faculdades da UniRitter. Melhor, diz outra: é pelas histórias, às vezes narradas pelas próprias mães, que aprenderam na marra, pelo amor ou pela dor, a habilidade de contar histórias. E, assim, ajudam a filharada a imaginar como, afinal, é aquele mundão de Deus com o qual tanto sonham e que, ao mesmo tempo em que parece tão perto, segue além do muro tão distante delas e de sua realidade concreta e encarcerada. É justamente pra tentar atenuar tamanhas dores que a estudantada leva lá pra dentro aquele punhado de livros com crônicas e poemas, mais as notícias frescas do jornal. Enquanto elas leem pra si e aprendem a narrar para os filhos, essas mulheres vão descobrindo outra magia típica da palavra escrita a de transformar em texto tudo aquilo que vai pelas entranhas, pela cabeça e pelo coração. E escrevem, sofregamente, sobre tudo: suas angústias, amores, esperanças... Uma delas, Kelly, acordou no meio da noite disposta a se corresponder com o Todo-Poderoso. Escreve pra Deus e promete, compungida, que vai mudar de vida quando sair dali. E que procurará viver, daqui pra frente, igualzinho aprendeu nos livros. Com o toque de recolher, a vida no lugar vira um breu só. Mas, para algumas delas, que se tornaram leitoras, e agora também escritoras, as noites de insônia e inquietudes da madrugada solitária deram vez e lugar aos versos e à boa prosa. Umas juram inocência. Outras clamam por uma justiça que talvez nunca chegue. O certo é que todas elas, mulheres endurecidas pela vida, descobriram que podem buscar nos livros, e na fantasia da literatura, uma nova razão de viver. Nota do Editor: Galeno Amorim (www.blogdogaleno.com.br) é jornalista, escritor e presidente da Fundação Biblioteca Nacional. Criou o Plano Nacional do Livro e Leitura, no Governo Lula, e é considerado um dos maiores especialistas do tema Livro e Leitura na América Latina.
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