Há um grande embate doutrinário e, principalmente, jurisprudencial, sobre qual dos dois princípios (in dubio pro reo ou in dubio pro societate) deverá ser aplicado quando, mesmo após a instrução da primeira fase do procedimento do júri, houver razoáveis dúvidas quanto à autoria ou a participação do acusado. É oportuno aqui esclarecer que in dubio pro reo, também conhecido como favor rei, favor inocentiae ou favor libertatis, é um princípio constitucional implícito ao processo penal. Segundo esse princípio, quando, na relação processual, houver conflito entre a inocência do réu, e sua liberdade, e o direito/dever do Estado de punir, havendo dúvida razoável, deve o juiz decidir em favor do acusado. O mesmo ocorre no tocante à interpretação de dispositivos processuais penais, pois, havendo dúvida razoável quanto ao seu real alcance e sentido, deve o magistrado optar pelo entendimento mais favorável aoréu. Um exemplo concreto da aplicação desse princípio no Código de Processo Penal é encontrado em seu artigo 386, VII, referente à absolvição do acusado quando não existir nos autos provas suficientes da imputação formulada pela Acusação. “Art. 386. O juiz absorverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça: VII – não existir prova suficiente para a condenação” Nesse contexto, o acusado é presumido inocente até que se demonstre o contrário. O princípio do in dubio pro reo situa-se dentre aqueles vinculados ao indivíduo. Na realidade, ele tem estreita relação com o princípio da não culpabilidade (art. 5º, LLVII, CF), o qual define que todos os seres humanos nascem livres e em estado de inocência, sendo permitida a alteração desta situação somente quando houver prova idônea produzida por meio do devido processo legal. Não existindo tais provas idôneas ou havendo dúvidas sobre a ocorrência do fato e os seus possíveis autores, o magistrado deverá optar por uma decisão favorável ao réu, preservando-se assim o seu estado natural de inocência. Até mesmo, porque, em regra, compete ao órgão acusatório a prova da materialidade e da autoria delitiva (art. 156, caput, CPP); se a acusação não foi hábil a comprovar o alegado contra o indivíduo, este não pode ser condenado com base em provas circunstanciais e temerárias, resguardando-se, além do mais, o Estado Democrático de Direito e a dignidade humana. In dubio pro societate, por sua vez, embora muitos o considerem como sendo um princípio inerente ao direito processual penal, mais especificadamente ao procedimento especial do júri, ele não passa de um brocardo jurídico criado por vias doutrinárias, cujo significado é “na dúvida, em favor da sociedade”. Trata-se de um “princípio” antagônico ao do in dubio pro reo, eis que, ao contrário deste, não havendo nos autos elementos probatórios firmes e livres de risco a indicar a provável autoria ou participação do crime, prefere adotar uma medida mais gravosa ao réu. Atualmente, a grande maioria dos magistrados atuantes nas diversas varas do júri espalhadas por todo o país prefere remeter o acusado a julgamento perante o Tribunal Popular mesmo havendo significantes dúvidas no tocante à sua autoria. Tais juízes argumentam que, como o objetivo da fase do judicium accusationis é meramente a realização de um juízo de admissibilidade da acusação, não é necessário, para a pronúncia do réu, que exista certeza sobre a sua autoria ou participação, bastando meramente indícios nesse sentido, independentemente se o conjunto probatório, analisado como um todo, gere dúvidas sobre esse assunto. Daí que não vige o princípio do in dubio pro reo, mas sim o in dubio pro societate, resolvendo em favor da sociedade as eventuais incertezas propiciadas pela prova. Os adeptos desse entendimento, para reforçar as suas convicções, utilizam como argumento o fato de que como a competência para julgar os crimes dolosos contra vida, sejam eles consumados ou tentados, é fixada constitucionalmente, somente os jurados podem dirimir quaisquer dúvidas, não podendo aqueles adentrarem ao mérito da causa. Consideram essa medida a mais adequada, uma vez que, não remetendo tais casos a julgamento perante o seu juiz natural, estariam usurpando essa competência constitucional do júri. Sendo assim, entregam o acusado ao Tribunal Popular, tendo os jurados o papel de resolver as dúvidas, prevalecendo-se assim as suas vontades, que, no caso, será a vontade da sociedade. É daí que surge o nome in dubio pro societate. Outrossim, outro argumento frequentemente utilizado é concernente ao fato desses adeptos acreditarem que, mesmo após a pronúncia do acusado e até a sessão do plenário, há a possibilidade de surgirem novas provas que esclarecerão as presentes dúvidas. Entretanto, em conclusão, constata-se que os argumentos a favor da incidência do brocardo jurídico in dubio pro societate são insuficientes, não possuindo, tal brocardo, qualquer relação de parentesco com o ordenamento jurídico pátrio. Deste modo, conclui-se que perdurando dúvidas após a instrução processual realizada na primeira fase do júri, sejam elas referentes à materialidade ou à autoria delitiva, deve o magistrado optar pela impronúncia do acusado, aguardando-se provas mais aptas antes de remetê-lo a um Tribunal leigo e soberano, evitando-se assim que qualquer inocente seja condenado, resguardando o princípio da dignidade da pessoa humana. Nota do Editor: Artigo escrito pelo advogado do escritório Fernando Quércia Advogados Associados, Gabriel Henrique Pisciotta, e pela estagiária Laís Caldeira Pegoraro.
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