Recentemente a imprensa noticiou que o FDA, órgão americano que controla alimentos e medicamentos nos Estados Unidos, aprovou dois medicamentos de uma nova classe, os inibidores de protease, para o tratamento da hepatite C: boceprevir da MSD e telaprevir da Janssen. O primeiro acaba de receber aprovação do Comitê de Medicamentos de Uso Humano (CHMP) da Agência Europeia de Medicamentos (EMA), para comercialização na Europa. Como médico e diretor do grupo Esperança, ONG pioneira no apoio a portadores de hepatites no interior de São Paulo, acompanho bem de perto a expectativa dos colegas especialistas e dos pacientes que não obtiveram sucesso com o tratamento atualmente disponível de que esses medicamentos sejam disponibilizados no Brasil até o final do ano. Temos mesmo de comemorar a nova descoberta. E temos também de informar e conscientizar a população sobre os reais benefícios dessa nova terapia e, principalmente, sobre o conceito da vulnerabilidade diferenciada que envolve a hepatite C, conhecida como “epidemia silenciosa” por ser assintomática e afetar cerca de 200 milhões de pessoas, das quais 2,7 milhões só no Brasil. A revista Nature publicou uma edição especial sobre a doença, na qual estampa de forma clara o quanto a hepatite C é subestimada e, até mesmo, equivocadamente ofuscada por outras doenças. Enquanto há um volume de investimento considerável e grande conhecimento acerca do HIV, para a hepatite C, que acomete pelo menos cinco vezes mais pacientes, o subdiagnóstico e a falta de investimento é a regra nos EUA. O mesmo ocorre no Brasil, como denota nossa percepção. A mensagem é clara: temos que agir e dar a dimensão real da hepatite C. Transmitida principalmente por sangue contaminado pelo HCV, é uma doença “sem cara”. Prova disso é que atualmente a maioria dos portadores da doença está na faixa dos 40 aos 50 anos, sem que exista a percepção de que essa seja uma população de elevada prevalência. E a grande maioria desconhece o fato de estar infectada. Esses indivíduos jamais usaram drogas, não fizeram tatuagens, tampouco tiveram qualquer tipo de comportamento promíscuo ou de risco. Por isso mesmo sequer cogitam a possibilidade de fazer o exame para a detecção da hepatite C, facilitando a progressão da doença. Isso porque uma pessoa infectada pelo HCV pode passar décadas sem manifestar qualquer sintoma. O fato é que 80% dos casos evoluem para uma infecção crônica e muitos desenvolvem cirrose e até câncer hepático. A primeira terapia combinada para o tratamento da hepatite C, desenvolvida no início dos anos 2000, consiste em injeções de Interferon peguilado e cápsulas de rivabirina. Até hoje utilizada como tratamento padrão, a terapia combinada é ineficaz em cerca de 50% dos casos tratados. Agora, uma década depois, graças à descoberta dos inibidores de protease, as chances de cura dos pacientes que não obtiveram sucesso com a terapia atual ou que nunca foram tratados podem ser aumentadas em até 70%, por meio da terapia tripla (associação dos inibidores de protease ao tratamento padrão). O grande diferencial entre as terapias é que, ao contrário do Interferon peguilado e da rivabirina, os inibidores de protease agem diretamente no vírus causador da hepatite C. Porém, isoladamente, nenhum desses medicamentos funciona de forma plena, razão pela qual a associação é necessária. A aprovação pelo FDA e a recomendação favorável feita pelo comitê da EMA devem auxiliar a avaliação da Anvisa, agência responsável pelo registro de remédios no Brasil, e acelerar o processo de aprovação dos novos inibidores de protease no país. Vale ressaltar ainda que, mesmo depois de aprovada, possivelmente a terapia tripla não será imediatamente adotada como política pública de saúde para o combate à hepatite C no Brasil. Um dos fatores limitantes para isso é a falta de uma rede de assistência estruturada e pronta para acolher todos os pacientes. Outro fator é o custo dos novos medicamentos, ainda indefinido. Mesmo assim, acredito que, a médio e longo prazos, essas terapias se mostrarão vantajosas do ponto de vista da farmacoeconomia. Isso porque, a partir do momento em que a terapia tripla aumenta o percentual de cura da doença, contribui para a redução do número de casos crônicos e de todos os desdobramentos possíveis advindos deles, principalmente a cirrose hepática, o câncer de fígado e a demanda pelo transplante hepático. Portanto, indiretamente, também contribui para a redução dos gastos públicos com esses pacientes. Nota do Editor: Evaldo Stanislau Affonso de Araújo é infectologista, mestre e doutor em Moléstias Infecciosas e Parasitárias pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, atua nas áreas de hepatites virais B e C. É diretor da ONG – Grupo Esperança de apoio a portadores de hepatites.
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