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Crônicas
20/08/2011 - 10h02
A barracoteca do Otávio
Galeno Amorim
 

Até hoje Otávio carrega a estranha sensação de que é o que é na vida graças ao futebol. Ou, para ser mais específico ainda, a uma pelada disputada no subúrbio da qual, na verdade, ele jamais participou.

Não que ele tenha se tornado um craque dos gramados. Ou ganho alguns trocos como profissional da bola, envergando a camisa de algum clube no Brasil ou no estrangeiro. Nada disso.

Mas é certo afirmar que a história do Otávio começou de fato num campinho na várzea. E justo naquele dia em que ele fora deixado de fora da brincadeira pelos meninos mais velhos da favela, que se sentiam os verdadeiros donos da bola e, por que não dizer, do mundo naquelas bandas.

O menino, então, não tinha mais do que oito anos. Como quem tem juízo obedece, o jeito foi arrumar alguma outra coisa para fazer. Pronto!

Enquanto remexia num latão de lixo, o moleque encontrou alguns brinquedos velhos e... um livro.

Como nunca custava nada, acabou levando aquele livro pra casa. Era Don Gatton, um conto espanhol, até hoje Otávio não se esquece.

A tantas da tarde, ainda sem ter o que fazer, acabou a luz elétrica. Com a tevê em branco e preto fora de combate e nada mais divertido pra se ocupar, o jeito foi recorrer ao livro. Ele nem dava grande coisa para aquilo. Mas o caso é que simplesmente adorou aquela experiência.

Começava ali uma vida de paixão e dedicação à causa da leitura - primeiro, com ele próprio se descobrindo como leitor; depois, fazendo uma descoberta ainda mais avassaladora. Percebeu que a vida reservara a ele um nobre papel: sair por aí apregoando para crianças pobres, como ele, como é que os livros poderiam, afinal, mudar suas vidas.

Para chegar lá, Otávio teve que pegar firme nos estudos. É verdade que, às vezes, ele deixava a mãe danada por matar aulas - mas a causa era justa, ele tentava se explicar: se escondia na biblioteca para poder ler livros de literatura.

Mais tarde, Otávio receberia algumas bolsas de estudo e faria um curso atrás do outro. Fez teatro, cinema e, por fim, se encantou com uma ocupação que até então nem sequer imaginava que existisse: a contação de histórias.

Otávio virou ator, depois produtor cultural. E achou que já era hora de devolver um pouco o muito que os livros já tinham feito por ele. Com o acervo que ganhou do Ministério da Cultura mais os exemplares que amealhou nos dez anos de peregrinações mambembes do seu circo literário pelo subúrbio carioca, abriu uma biblioteca comunitária.

A Barracoteca Hans Christian Andersen funciona no Morro do Caracol, no recém-pacificado Complexo da Penha e do Alemão, que reúne 13 favelas da Zona Norte do Rio de Janeiro. Está instalada num sobradinho de dois andares, onde existia um salão de forró e quer irradiar a leitura entre os 400 mil habitantes do entorno. É um desafio e tanto.

O que Otávio mais curte é ler para as crianças:

- Quero que elas ampliem seus horizontes - ele diz, com brilho nos olhos.

Pelo visto, já começa a surtir efeito. Dia desses a menina Gabriely Estevão, oito anos, podia ser vista brincando de médica em plena Rua Nova, nos arredores da biblioteca. Segura de si, ela anunciava:

- Eu quero ser doutora! A gente tem que ler para ser alguma coisa na vida...

A aventura onírica de Otávio começou com um tapete emprestado da mãe. Mais uma mala velha vermelha achada no lixo. Com ela, Otávio chegou a transportar uma centena de livros e ia de casa em casa contar histórias.

Hoje sonha com o dia em que haverá uma biblioteca em cada esquina da favela. Sua história já foi parar na tevê e ele é reconhecido aonde vai. Em pouco tempo, tornou-se uma das figuras mais populares do pedaço, que até pouco tempo atrás era uma área conflagrada pelo tráfico e considerada uma das zonas mais violentas da cidade.

No lugar dos tiros e das mortes, Otávio Junior, o livreiro do Alemão, levou para lá livros. E a perspectiva de uma nova vida.


Nota do Editor: Galeno Amorim (www.blogdogaleno.com.br) é jornalista, escritor e presidente da Fundação Biblioteca Nacional. Criou o Plano Nacional do Livro e Leitura, no Governo Lula, e é considerado um dos maiores especialistas do tema Livro e Leitura na América Latina.

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