| Thiago Cayres |  | | | Sua vida inteira com preço pela metade. |
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- É daí que publicaram o anúncio "Sua vida inteira com preço pela metade"? - Isso. Eu escrevo biografias por encomenda. Tenho quatro na fila, só pra esse mês. - Mas essa oferta é pra todo mundo ou é só pra quem tem uma vidinha do tipo mais ou menos, sem muitas peripécias? - Olha, tanto faz se a vida é da Dilma Rousseff ou da tia-avó dela, que ficou lá na Ucrânia. - Bulgária. - Isso, Bulgária. É indiferente, meu camarada. - Então, mas pra aproveitar a promoção existe um limite de páginas? - O meu sistema de cobrança é por vida, não por página. Caso o livro fique fininho, não tenho nada a ver com isso. Se a vida do sujeito é inexpressiva a culpa é do biografado, não do biógrafo. Agora, uma vida cheia de sobressaltos é mais trabalhoso, enquanto que uma vida sem muitos altos e baixos é mais tranquilo de fazer. De qualquer forma, não tem diferença de custo. - Mas você concorda que, se eu tenho uma vida comum, eu não vou querer uma biografia, certo? Vou falar o quê? Que eu acordo, escovo os dentes, tomo café da manhã, vou trabalhar, volto pra casa, janto e vou dormir? Quem é que vai querer ler isso? - Bom, se você pensa assim, então porque tá ligando? - Isso é problema meu. O senhor faça o favor de ter mais educação com os seus clientes potenciais. - Tá bem, me desculpe, é que você me ligou num momento meio conturbado. O velhinho que eu estou biografando está morre-não morre e a história toda ainda está patinando no capítulo 3. Mais exatamente na parte do bolo estragado da festa da crisma. E o pior é que o velho está com insuficiência respiratória severa. Eu tenho que ficar com o ouvido colado na boca seca do desgraçado pra ir ouvindo aos poucos o que ele fala. Daí então eu corro pro computador, escrevo aquilo que ele disse e volto pra ver se arranco mais alguma coisa antes que ele bata com as dez. - Sei. Só que pra contratar os seus serviços eu preciso ver algum livro que o senhor tenha escrito, pra avaliar o estilo, sabe como é. Tenho que ver o que eu estou comprando. - Sim, sim. Podemos dar um jeito, embora o meu nome não apareça como escritor por questões de contrato com o biografado. Pra todos os efeitos, é o sujeito que escreveu, entende? Escritor fantasma não tem portfólio. - Certo, mas agora voltando ao orçamento. Como eu ainda estou muito bem disposto e não pretendo morrer tão cedo, mereço um desconto extra. Não dá pra comparar o trabalho que o senhor vai ter comigo com aquele que está tendo com o velhinho vai-não vai. Posso inclusive ir aí na sua casa, pra facilitar as coisas na hora de contar as histórias. Além disso o senhor deve estar meio a perigo, já que publicou seu anúncio num site de compras coletivas. A coisa anda feia pro lado do seu cheque especial, não anda não? Me vê aí o melhor preço à vista que o senhor pode fazer. - Não estou matando cachorro a grito, não! Como disse, meu amigo, tem quatro na sua frente e a fila tem que andar. Portanto, se for continuar me esnobando, eu tenho mais o que fazer. - Quanto, eu quero saber quanto sai a brincadeira... - Então, tá. Vou dar o meu preço sim. Sabe quanto? Dois reais. Dois reais está bem pago, porque pelo jeito a sua vida é tão nula que não vai me dar trabalho nenhum. Não deve encher nem um gibi. Quando muito, um folhetinho desses que distribuem no semáforo. - O quê???? - Se bobear, cabe tudo na frente. Não precisa nem do verso.
Nota do Editor: Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário em Campinas (SP), beatlemaníaco empedernido e adora livros e filmes que tratem sobre viagens no tempo. É colaborador do jornal O Municipio, de São João da Boa Vista, e tem coluna em diversas revistas eletrônicas.
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