Moisés, Laudércio, Antônio Jorge. São nomes de crianças comuns. Dessas que se encontram por toda parte, país afora, em pequenas vilas do interior ou nas periferias das grandes cidades. Por nomes assim é que atendem esses meninos e meninas que, embora na pobreza, vivem lá a sua vida, em casas simples, porém numa família de bem e... A frase acima bem que poderia ser completada assim: "...e, como qualquer outra criança da idade, brincam numa parte do dia e na outra vão à escola pública do lugar". Mas, não. No caso desses e de um outro bom tanto deles, de Norte a Sul, não é assim. Todos os três meninos, e um punhado de outros daquela zona, foram, desde muito cedo, para a labuta nas plantações de sisal. Brincar e ler, se acostumaram a ouvir, era coisa de filho da gente rica da cidade. Por isso, Antônio Jorge sempre foi uma criança triste. Brincar ou estudar nunca fez parte da sua infância. Nem mesmo do seu vocabulário. Antes de o sol nascer, ele já estava de pé. Pronto para a luta de todo dia. Passava horas, ao lado do pai, ceifando a palha. Os espinhos, que vez ou outra deixam cortes profundos na pele, eram, podia se dizer, o que mais se aproximava de um brinquedo. De fato, era aquela uma vida dura a que levavam nos arredores de Retirolândia, no sertão da Bahia. Não havia perspectiva melhor para gente como eles, que acabam sempre se resignando e acham algo muito natural trocar o lápis e a caneta pela foice. O jeito era viver naquela escuridão danada. Mas um dia os homens do governo apareceram e avisaram: criança não podia mais trabalhar. Foi um deus nos acuda! Como, afinal, aquela meninada embrutecida poderia aprender a ser alguém na vida sem o santo remédio do trabalho?!, se horrorizavam. Para alívio da parentela, cada qual passou a receber uma bolsa do governo, como que para compensar a trocar do trabalho infantil nas lavouras de sisal pelos bancos escolares. Mas não era fácil: após uma infância inteira longe dos cadernos, ter que ir à escola a essa altura do campeonato?! Foi aí que alguém deu a ideia: por que não liam para aqueles moleques crescidos e endurecidos pela vida as histórias que iam dentro dos livros? Com o mesmo sisal que, até então, roubara parte preciosa daquela infância perdida, fizeram baús de bom tamanho. Dentro, encheram de livros. - Dentro desses baús acabei por descobrir um mundo novo! - diz, com incontida emoção, Antônio Jorge Santiago. Em seus 15 anos, todos eles vividos no meio do mato, jamais imaginara que pudesse existir tanta coisa diferente como aquelas que, agora, calmamente sorvia das páginas de cada livro que lhe caía às mãos. Laudércio Carneiro, para quem certo não devia ser ter que trabalhar em vez de ir à escola, sentia o mesmo. - Os livros me tornaram gente - garante, com um orgulho indisfarçável. Já Moisés, que os amigos insistem em chamar de Moca, era um menino muito tímido. Envergonhado demais da conta. Não abria a boca pra nada. Tanto que no dia em que a professora, uma moça chamada Ana Paula, o chamou para ler na frente de todo mundo, ele simplesmente foi tomado de pavor. Suava frio. Só foi mesmo porque, na hora H, ela, percebendo seu nervosismo, deu um leve empurrão nas suas costas. Ele foi. Leu sem gaguejar. E gostou! Desde então, tornou-se presidente do grêmio da escola e líder da turma. Parece milagre, mas o causo é que aqueles livros vêm, pouco a pouco, mudando os hábitos e a própria vida do lugar. O Movimento de Organização Comunitária faz uma conta: já deve ter espalhado uns 700 Baús da Leitura pelas cidades daquela zona do sisal. Adilson Baptista, um dos líderes, observou que a literatura tem aproximando as pessoas de lá com outras que elas nunca viram mais gorda e, provavelmente, jamais conhecerão nesta vida. - A pessoa que não lê vive isolada do mundo - ele tem apregoado a quem tem ouvidos de ouvir. Os livros, aposta ele, podem, justamente, ser esse elo entre as pessoas. Nota do Editor: Galeno Amorim (www.blogdogaleno.com.br) é jornalista, escritor e presidente da Fundação Biblioteca Nacional. Criou o Plano Nacional do Livro e Leitura, no Governo Lula, e é considerado um dos maiores especialistas do tema Livro e Leitura na América Latina.
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