E lá se vão quase 40 anos. A primeira vez que subi em um veículo automotivo foi com o meu saudoso e querido avô. Motorista profissional, exibia com orgulho sua carteira de couro, bem como a sua filiação ao IAPETC, o que, segundo ele, lhe garantia uma boa aposentadoria. Faleceu, como tantos outros contribuintes do tal Instituto, enganado. Orgulhava-se muito da sua profissão e gabava-se de nunca ter se envolvido em qualquer tipo de acidente de trânsito. Seu caminhão era um Chevrolet azul, talvez 1947, polido e limpo, que muitas vezes era a condução coletiva nas festas de família. Sério, magro, bem alto, olhos claros, careca, sempre vestia camisa branca de mangas curtas e calça bege. Charmoso, o velho, quando entrava na Mooca, passava pela Rua Bresser, arrancava longos suspiros e olhares insinuantes da Dona Nina, para ciúmes da minha vó Clementina. Esta figura especial era o meu avô Chico Dias. Eu não era, pelo menos à vista dos familiares, o neto preferido, pois tinha o Goro, meu primo, que por ser mais velho, merecia este cobiçado lugar. Mas, meu avô, longe dos olhares da reprovação coletiva, de vez em quando, colocava-me no colo para experimentar aquela máquina maravilhosa, que nos obedecia, de acordo com a virada do volante. À direita e à esquerda. Ah! Tinha pedais, mas eu só conseguia ver a ponta dos pés do velho "funcionar". Seus pés, naqueles pedais, pareciam os da Tia Mafalda no piano, quando desafinada, tocava nas festas de casamento e aniversários. Criterioso, vovô foi me ensinando a dirigir "de ouvido". Pelo "barulho do motor". Primeira marcha, segunda, terceira. Reduzir na aproximação do cruzamento. Pisar no breque junto com a embreagem. Pisca-pisca para a direita, acompanha a mão por cima da cabine. Para a esquerda, apenas a mão para fora. Muito cuidado em todos tipos de cruzamento. Não acredite no sinal verde, procure criar a percepção. Na dúvida? Pare! Lembro-me destas recomendações, pausadas em sua ronquidão. Ele era muito metódico quanto ao comportamento dos passageiros, no interior dos veículos, até mesmo nos táxis. "Não falem e nem chamem o motorista; não tire a atenção do motorista", asseverava. Aos poucos, com a nossa convivência, fui assimilando suas lições e treinando, a custa das rodinhas dos meus carrinhos nos montes de areia. Quando vovô vinha em casa, não entrava sem assobiar "fiooo fiuuuu", e eu, largava tudo e corria para seus braços dizendo: Vô, é assim?... Imitando com meus lábios, todos os barulhos característicos de motores de carros. Gostava mais do som dos motores de dois tempos, como os do antigo DKV Vemag. Penso que esta minha vocação prematura para o volante tenha contribuído para que o velho aumentasse sua afeição por mim. Eu, me ria todo, quando ele dizia: "...é meu neto, você tem jeito pra coisa." Assim passaram-se os anos, e eu, consegui tirar minha carteira de motorista. Correndo fui comemorar nos braços do velho, que fez questão de me acompanhar. Pude sentir lágrimas de alegria em seus olhos, quando lhe apresentei meu primeiro carro e o convidei a entrar. Ele devia estar muito orgulhoso. Sentou-se comodamente no banco do passageiro e disse: "toca em frente meu neto". O carro moderno tinha muitas sofisticações. "Muitos botões", dizia ele. Mesmo assim me acompanhava em cada movimento e, com atenção no tempo da troca das marchas afirmava: "Assim não desgasta o motor". Certa vez, quando ele, pela idade, já não dirigia, passei por sua casa e o convidei para dar uma volta. "Vamos dar uma volta por aí." Orgulhoso e apressado, só pediu um tempo para pegar a galocha e o guarda-chuva, companheiros inseparáveis; pois sempre, segundo sua previsões, iria chover. E lá fomos nós, naquele domingo ensolarado, quente, com o céu azul sem nenhuma nuvem. Pediu que eu o levasse, se possível, até o Brás. Rua após rua, no seu silêncio, colecionava lembranças... Quantas seriam? Na volta, de propósito, vim pela Mooca. Fingindo estar perdido, passei bem em frente à casa da D. Nina. Ele me olhou, e ameaçou um sorriso, com um ar maroto, quase agradecido. Não trocamos qualquer palavra a respeito. Estava selada nossa amizade. Aproveitou o fim do trajeto para contar sua mais repetitivas estórias das inúmeras viagens, por estrada de terra, entre sua cidade natal, Cerquilho, e a Capital. Também não foram poucas as piadas "de português". De repente, pediu para parar. Queria urinar. Paramos no boteco do Dino, e aproveitamos o final da tarde para tomar umas cervejas e comer tremoços. Aquele bar, deveria ser seu reduto. Muitos amigos. Fez questão de me apresentar um por um. Na saída gritou: "Oh Dino! Este aqui é o meu neto preferido. Nós dois estamos dando umas voltas por aí." Rindo e felizes fomos embora. Antes de chegar na avenida, fez questão de corrigir alguns dos meus "defeitos" ao volante, e dar conselhos úteis num tom didático: "toda perícia é pouca quando temos que tomar cuidado com os outros. Dirigir carece atenção redobrada. O veículo mal conduzido, torna-se uma arma. Não entregue a direção a quem não sabe dirigir; pode ser um desastre. Quando não conhecer a estrada, vá com cuidado, pois o perigo ronda a cada curva. Olha, não confie muito no seu carro novo, hoje tem muita gente na rua. Mal educados, não respeitam a sinalização! Motoristas e carros tem de montão, haja ruas! Dirigir não é só virar pra direita e esquerda, acelerador, breque e desembreio; dirigir é saber conduzir. Não basta ter carta..." Só parava de repetir sua frases depois do: "até logo vô, um beijo na nona..." Hoje, nas minhas orações, lembro-me dele e agradeço. Obrigado vô, por tudo! Ele se foi há muitos anos, mais deixou uma enorme herança, que só descobri com o tempo. Entendi outros recados nas suas lições de volante. Eram também lições de vida. Estou ensinando-as aos meus filhos. Vovô, se onde estiver, poder me ouvir e puder sentir, aqui vai um abraço saudoso e bem apertado do seu neto preferido.
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