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Crônicas
02/01/2012 - 17h00
Crônica de um operário
Marco Albertim
 

Tão malvados quanto a madrasta são os olhos do contramestre; protegem-se nos óculos de aro fino e lentes redondas. A bata azul de mangas curtas desce na altura dos joelhos; não o deixa desengonçado porque enche de autoridade seu corpo franzino; a autoridade cresce quando ele sobe, sem pedir licença, os degraus que dão acesso ao escritório. Ninguém o vê, não do enorme salão onde os peões se misturam a chapas de ferro, barras de aço, lingotes de chumbo, bronze.

Carlito o presume mexendo-se com desenvoltura entre os birôs, os auxiliares da contabilidade, da chefia de pessoal e, talvez, na sala fechada do proprietário, com ar-refrigerado e uma geladeira de uso pessoal. Tão desenvolto o contramestre, quanto a madrasta de Carlito no trato do fogão, dos pratos e talheres; sobretudo quando a mesa, coberta por uma toalha de pano quadriculado, acolhe a folgança da panela de barro soltando a fumaça do feijão saído do fogão.

Há uma janela com um vidro fechado de cima a baixo, nos lados; não há como abri-la, mas de lá se vê as prensas com cabeçotes movendo-se, subindo e descendo na altura do tórax do operador. O dono levanta-se da poltrona pelo menos dez vezes por dia, para assegurar-se de que a produção segue o ritmo, a velocidade das encomendas do que supõe ser a carência de calhas, reatores de parede, dutos de uso caseiro.

O contramestre da manutenção tem Carlito sob controle; desde quando o admitira, depois que impusera como teste tornar em seis lados iguais, a ponta de uma haste redonda de ferro, com a espessura do cano de um fuzil. A haste sextavada teria que encaixar noutra peça, também de ferro, com uma abertura de seis lados. A juntura, posta à luz, não podia deixar passar qualquer traço de claridade. Um fio de luz seria o caminho de retorno à rua, por onde entrara Carlito. A peça ficou pronta numa manhã. Sem macacão, ele suou em bica sob a camisa de algodão; uma das poucos que comprara no ofício de biscateiro no mercado público; suou feito o pano no prato sob o vapor da chaleira quente, familiar à madrasta na cozedura do cuscuz. Lembrou-se das aulas práticas no curso de ferramentaria, noturno, junto a moços desempregados como ele.

Em casa, no almoço, explicou ao pai e à madrasta o uso da furadeira elétrica para abrir o furo redondo; o desbaste dos lados com as miúdas navalhas da lima de aço. E o uso da plaina elétrica desbastando a redondez do ferro em seis lados, um de cada vez; os cortes da navalha, afiada por ele mesmo no esmeril, numa medida aproximada da projetada. A exata, a medida exata, com as mãos; a direita empunhando o cabo de madeira da lima, a esquerda equilibrando-a na ponta, de modo a deixar o corte tão horizontal quanto a régua de aço que delimitara os milímetros a serem descartados.

A madrasta e o pai entenderam pouco; nunca ouviram falar em ferros sextavados. Deram-se por satisfeitos com a admissão do novo operário; principalmente ela, entrevendo a chance de abiscoitar um quinhão do salário do enteado. Comia do mesmo cuscuz, ele, cozido na chaleira de alumínio com marcas de quedas e machucões.

Com o primeiro salário, Carlito sentiu-se com direito às frituras nos domingos; ovos batidos, embrulhando a carne desfiada. Sem feijão, porquanto a madrasta se impunha descanso no fim de semana. Mas com arroz abundante, branco, cheiroso.

A madrasta, viúva como o marido, não é de tratos com frases vãs; ocupa o juízo com a faxina, com a cozinha, com a roupa lavada e estendida no varal do quintal. O marido é tão monossilábico quanto ela; contentam-se com a viuvez escondida num nicho da memória. Carlito tem saudade da mãe, inda que não diga; assunta-se consigo, mudo, na rede que comprara à prestação.

O contramestre subira ao escritório com os passos lentos. Antes de sentar-se de frente para o dono da fábrica, pôs os olhos nos operários, nos olhos sôfregos da peãozada, de serralheiros com bafos de chefia.

A conversa demorou; arrazoado de empresário, por certo.

No fim da tarde, ele chamou Carlito.

- Carlito, vá ao setor de pessoal.

Em casa, o ferramenteiro deu a notícia depois de comer sua parte do cuscuz.


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

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