Nem adianta perguntar por Manoel Ribeiro Filho por lá. Dificilmente algum morador de Auzilândia conseguirá responder - muito embora ele seja nascido e criado no povoado e, de uns anos para cá, tenha se tornado o mais famoso entre os 4 mil moradores do lugar. Mas não há no vilarejo inteiro, em pleno corredor de Carajás, no interior do Maranhão, quem não conheça o Barraca. O apelido é autoexplicativo - e foi conquistado, digamos, a duras penas, e por mérito próprio. Barraca vivia se metendo em encrencas. Estava envolvido com drogas e fugia como um diabo da cruz dos sermões e conselhos dos pais e dos professores. A verdade é que não se esperava mais lá muita coisa para o futuro do moleque indisciplinado e de notas baixas. Mas não é que um dia a vida do Barraca mudou?! De cabeça pra baixo. Ou de pernas para o alto! E tudo por causa de um jegue, esse animal quase sagrado na vida do sertão. O milagre foi o seguinte: certo dia uma professora escalou o menino para ser o condutor de um dos animais que saem carregados de livros no lombo para convidar a população a ler mais. Trata-se de um projeto - que mais tarde receberia diversos prêmios - criado pela prefeitura de Alto Alegre do Pindaré para percorrer ruas e praças de vilarejos com nomes como Mineirinho, Três Bocas, Timbira do Bogeá ou Nova Olinda atrás de gente interessada em livros. O festivo arrastão, com o jumento à frente, sai com toda pompa à cata dos leitores. Os livros são espalhados no chão, em cima de um lençol, para quem quiser pegar. Como muitos ali são analfabetos, sempre há uma alma caridosa pronta para ler em voz alta. Foi justamente aí que a vida do Barraca começou a se transformar. - É muito legal ler para os outros - logo descobriria o motorista da Bibliojegue. - Passei a ser reconhecido pelos meninos nas ruas e até a ser chamado de tio... Pronto. Virou um contador de histórias, essa figura mítica que vai, aos poucos, se multiplicando pelo Brasil - sabidamente um país de forte tradição oral. O menino - justo ele, que nunca fora afeito ao quadro-negro e aos cadernos - gostou tanto da história que resolveu virar professor de jovens e adultos. Quer iniciar mais gente como ele próprio no mundo mágico das palavras. O jegue carregado com um jacá colorido cheio de livros no lombo sai uma ou duas vezes por mês por pequenos lugares onde inexiste o acesso aos livros. Supre, assim, a falta de bibliotecas em certas localidades. A mecânica é simples: os livros são os da escola e os condutores são os próprios alunos, que, geralmente, têm tempo de sobra para tal. E público é o que não falta: como livro é coisa rara por lá, muitos que já eram alfabetizados acabaram por desaprender a arte de ler e escrever por pura falta de prática. Uma professora percebeu e deu a ideia, que logo pegou. Nesses dias, a vida nos povoados vira um rebuliço só. Desde então, a reprovação e a evasão escolar caíram e o rendimento e o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) subiram. Alguns futuros leitores são fisgados na hora. Como aconteceu com o lavrador Nilo Mendes, de 72 anos: - Meu sonho era saber ler e escrever para subir na vida e ser alguém na sociedade - diz, emocionado. Além de tudo, o projeto é baratíssimo: os jegues são emprestados pelos moradores e o combustível... - bem, este é extraordinariamente abundante por aquelas terras de meu Deus. Nota do Editor: Galeno Amorim (www.blogdogaleno.com.br) é jornalista, escritor e presidente da Fundação Biblioteca Nacional. Criou o Plano Nacional do Livro e Leitura, no Governo Lula, e é considerado um dos maiores especialistas do tema Livro e Leitura na América Latina.
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