21/08/2025  06h32
· Guia 2025     · O Guaruçá     · Cartões-postais     · Webmail     · Ubatuba            · · ·
O Guaruçá - Informação e Cultura
O GUARUÇÁ Índice d'O Guaruçá Colunistas SEÇÕES SERVIÇOS Biorritmo Busca n'O Guaruçá Expediente Home d'O Guaruçá
Acesso ao Sistema
Login
Senha

« Cadastro Gratuito »
SEÇÃO
Crônicas
13/04/2012 - 16h00
O velho camarada Manoel
Juvenal Azevedo
 

O Velho Manoel, meu pai, como todo ser humano, tinha algumas complexidades.

Primeiro, eu quero dizer que, graças a Deus, eu tive a oportunidade de conviver “intimamente” com ele, durante cerca de quinze anos, se é que a gente possa classificar assim o nosso relacionamento, de modo a poder corrigir algumas atitudes errôneas que eu tive nos primeiros anos da minha adolescência, quando eu era um pequeno nazista, se não ideologicamente, ao menos nas atitudes.

Eu enchia o saco dele por tomar seus vinhos e suas pingas e também por fumar. Claro que ele bebia moderadamente e fumava também pouco. Mas o fato dele beber e fumar era suficiente para eu pegar no pé dele e de maneira bem pouco educada, o que ele aguentava com o estoicismo de um santo, com uma superioridade de atitude que, sem dizer, ficava nas entrelinhas, algo como “um dia você vai compreender, um dia você chega lá”. Sábio homem!

O primeiro traço de temperamento ou de caráter dele que mais me marcou no resto da vida, foi a extrema generosidade, o mais absoluto desprendimento para com os filhos: as melhores partes do frango eram para os filhos (e numa época em que pobre, quando comia frango, era porque um dos dois estava doente, como dizia o genial Barão de Itararé), nunca para ele. E também com o peixão assado cortado em postas, que ele costumava fazer aos domingos, com batatas, azeitonas e rodelas de cebola, com azeite por cima. Uma delícia!

E assim, sempre. O melhor era para os filhotes, e ele jurava que gostava mesmo era de asas, pescoço e cabeça! Talvez até ele tenha aprendido a gostar daquilo que os outros não gostavam, sei lá!

Esta é uma atitude que eu sempre procuro fazer com os meus próprios filhotes, a ponto deles passarem a desconfiar de mim, quando digo que não quero mais determinado alimento ou que a quantidade de partes de frango per capita dá X pedaços para cada um etc. etc. Mas são valores que eu peguei do meu pai e que procuro seguir, ao contrário de outros pais e outros adultos, que procuram sempre ficar com a maior quantidade e as melhores partes da comida e de outras coisas.

Lembro também com muito carinho de quando eu chegava da escola, varado de fome e, mais ou menos, já tinha idéia de qual seria o cardápio, pois ele tinha dias quase sempre fixos para fazer determinados pratos. Por exemplo: terça-feira, quase sempre, era o meu prato favorito: purê de batatas com salsichas ao molho vermelho (de massa de tomate, que nisso o Velho não era de fazer o molho à moda italiana, muito trabalhoso - era um homem essencialmente prático e, além do mais, creio que havia a necessidade de se fazer uma certa economia, embora jamais haja faltado azeite de oliva português, por exemplo, mas, como eu disse, ele tinha suas complexidades).

Quinta-feira era dia de macarrão e o molho, claro, era à base de massa ou extrato de tomate - não havia ainda purês de tomate ou molhos prontos, os Pomarolas da vida.

Sexta-feira o Velho respeitava a tradição e o prato era, quase que invariavelmente, sardinhas fritas inteiras, passadas na farinha (imagino que seria farinha de rosca), acompanhadas de arroz e feijão.

E, na minha lembrança, tudo que ele fazia era delicioso. Simples, sem frescuras, mas gostoso, muito gostoso.

O Velho era também um homem honrado e nisso também eu procuro seguir o seu exemplo. Honrado num sentido amplo, de cumprir tudo que prometesse, de honrar sempre a sua palavra.

Era também honesto. E extremamente responsável. Viveu sempre da sua aposentadoria que, imagino, devia ser pouca e nunca aceitou que eu contribuísse financeiramente para a casa, só me restando, vez por outra, apanhar uma conta de água ou de luz e levar pra pagar. Verdade que as jóias e bijuterias que o Banzé (meu irmão Arnaldo era carinhosamente chamado por mim de Banzé, pela “semelhança” com o cachorro da Disney) dava ao Velho pra revender deviam ajudar a engordar a renda do Camarada Manoel, mas ele sempre soube administrar muito bem suas finanças.

O Velho era também anticlerical. Acreditava em Deus, embora não me lembre de tê-lo visto nunca na igreja. Falava sempre mal do Vaticano, que tinha grandes propriedades no mundo todo, dos padres e das freiras, por aí afora. Mas, melhor assim, já que nosso vizinho da Tobias Barreto, o “Seu” Teixeira, que tinha uns doze filhos, ia todo dia à primeira missa, creio que às 6 da matina e dava polpudas contribuições para a paróquia, depois chegava em casa e batia ferozmente nos filhos todos, era o contraponto perfeito para o anticlericalismo do Velho.

Talvez pelo fato de eu ser o mais novo dos sete filhos, peguei o Velho Manoel já mais amadurecido, mais tolerante, num sinal de que ele acompanhava os novos tempos. Apanhei dele uma única vez, com cerca de dez anos, de cinta, como disseram na época “em posição de sentido”, pois o encarei firmemente, olhos nos olhos, sem correr pra tentar escapar do anunciado castigo e, após duas ou três cintadas, ele recolheu a cinta, deu marcha a ré e retirou-se do quarto, sem dizer uma palavra. A propósito: o Velho era de poucas palavras, nossa comunicação era intensamente não-verbal, a gente se sacava e se compreendia sem quase falar.

Pelo fato de eu ser o mais novo, fui o único que, volta e meia, o chamava de você, alternando com o tratamento que lhe dispensavam os outros filhos, o cerimonioso “senhor”.

Pra finalizar, como eu disse antes, tive a sorte de poder viver praticamente só eu e ele dos 12 aos 25 anos, quando pude “mudar os meus conceitos” em relação ao Velho, vendo com o passar do tempo que ele era uma figura para ser copiada e imitada no seu temperamento, no seu caráter, na sua integridade e até no seu jeito de ser, embora ele não fosse de demonstrações efusivas de afeto, o que, certamente, lhe devia fazer falta, mas que, camponês de Trás-os-Montes nascido no século 19, isso fazia parte da sua natureza. Comportamento entre homens, mesmo que pai e filho, era daquele jeito, até mesmo sem abraços, e não lhe ocorria, como eu faço ainda hoje, fazer cócegas de leve nos pés do Alexandre ou conduzi-lo “de peixinho” no mar ou na piscina.

Politicamente, o Camarada Manoel tinha mais “complexidades”. Era getulista de carteirinha, mas não deixava de ouvir os veementes discursos do Carlos Lacerda pelo rádio, atacando o então presidente. Era um democrata nas atitudes e no dia a dia, mas não cansava de clamar pela intervenção dos militares: “Só os militares para endireitar este país” era um mantra manoelino de uso frequente. E era um homem bem informado, lendo sempre jornais que eu recebia em casa como cortesia das editoras (“O Tempo” e o “Correio Paulistano” nos últimos anos) e, anteriormente, ainda em Extrema, “A Época” e “O Dia”, ambos de propriedade do Adhemar de Barros, pois certamente foram os únicos que se dispuseram a enviar alguém até lá pra fazer assinaturas. E, claro, jamais suportou Adhemar, tornando-se janista ferrenho, tal como eu próprio. Além disso, vivia ouvindo rádio, numa época em que a televisão engatinhava e a internet não estava nas cogitações de ninguém. Era um homem bem informado o Velho Manoel. E sorte de quem chegou a conhecê-lo.


Nota do Editor: Juvenal Azevedo (adriejuva@uol.com.br) é jornalista e publicitário.

PUBLICIDADE
ÚLTIMAS PUBLICAÇÕES SOBRE "CRÔNICAS"Índice das publicações sobre "CRÔNICAS"
31/12/2022 - 07h23 Enfim, `Arteado´!
30/12/2022 - 05h37 É pracabá
29/12/2022 - 06h33 Onde nascem os meus monstros
28/12/2022 - 06h39 Um Natal adulto
27/12/2022 - 07h36 Holy Night
26/12/2022 - 07h44 A vitória da Argentina
· FALE CONOSCO · ANUNCIE AQUI · TERMOS DE USO ·
Copyright © 1998-2025, UbaWeb. Direitos Reservados.