A ADPF 54 deverá obter do STF uma diretiva vinculante para o entendimento de certos artigos do Código Penal, tanto velhos quanto ultrapassados, para que não mais sejam interpretados para incriminar quem interrompa uma gestação anencefálica. Além da inesgotável polêmica jurídica e moral sobre o valor da vida, debatem-se também as vias pelas quais a decisão é tomada. Por que, novamente, o STF decide algo que poderia ter sido discutido no Congresso? Não terá se excedido o tribunal? Não há excesso algum. O Congresso poderia, claro, se houvesse consenso político, modernizar o Código nesse aspecto, como fez com os crimes sexuais. Mas o fato de eventual mudança nessa matéria vir do Judiciário não é sinal de anomalia institucional, não macula a posição vencedora, nem apequena os direitos nela afirmados. Embora a separação de poderes reserve precipuamente a tarefa legislativa ao parlamento, o desenho institucional de muitas democracias tem mecanismos para garantir os direitos constitucionais das minorias. Caso contrário, grupos politicamente sub-representados estariam sempre correndo risco de ser desatendidos em seus direitos fundamentais. No caso brasileiro, o garantidor desses direitos é o STF. O tema do direito de aborto em casos de anencefalia é ilustrativo das circunstâncias em que tal arranjo se mostra oportuno. A questão é de foro íntimo em sua natureza, a saber, como deve agir a gestante que tome conhecimento da condição anencefálica de seu feto. De um lado, há quem entenda que a decisão envolve muitos pontos de vista (afetivos, morais, religiosos) e que não é legítimo que o Estado incorpore uma particular orientação e a imponha, sob ameaça penal, a quem usa sua liberdade de convicção para decidir qual decisão tomar em relação ao prosseguimento, ou não, da gestação. De outro, há quem entenda que o Estado deve incorporar determinada concepção moral, neste caso associada a certas crenças religiosas, para impor uma particular orientação sobre o valor da vida e forçar a gestação a termo. É esperado que o primeiro grupo seja minoritário em relação ao segundo. A oposição à legalização do aborto de anencéfalos reúne grupos bem representados politicamente, como as bancadas religiosas. É legítimo e saudável que se organizem e se façam representar, mas seu pleito, desta vez, é contrário à Constituição. Como esperar que o Congresso, onde vale a regra da maioria, proteja o grupo minoritário em tal contexto? Aqui, a interferência do STF é possível e perfeitamente compatível com um regime democrático, em que deve prevalecer igual respeito aos direitos de todos os cidadãos, independentemente de suas convicções morais ou religiosas. Nota do Editor: Rafael Mafei Rabelo Queiroz é professor da DIREITO GV e doutor e mestre em Direito pela USP.
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