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Crônicas
22/06/2012 - 15h00
Cuia d’água
Rangel Alves da Costa
 

Eu quero um copo d’água, tenho sede e essa sede pode me matar, diz a estrofe da música. Já outra diz que água que não cai não enche moringa, resseca a sede e a vida se esvai. E o tempo passando e a chuva não cai.

Junto mais pra dizer que lá no sertão onde nasci - em Nossa Senhora da Conceição do Poço Redondo - tem gente que já matou a sede com a lágrima e agora precisa de uma fornalha maior de sol para estender os próprios ossos e do carvão sertanejo alimentar a si mesmo e aos seus.

É o canto da tristeza e do sofrimento, da dor e da agonia. Chega Maria, traz o balde, a lata velha, a cuia ou a bacia. Se a fraqueza não permitir, se força não mais existir, traga só a boca aberta, a mão estendida, o olhar de desesperança. Zefinha logo virá com um pote cheio de vento na cabeça que é pra não perder a destreza.

A poeira sobe e se espalha, ao longe um barulho conhecido é ouvido. Chega, chega, corre pra estrada que o carro-pipa vai passar. Passou ano passado e com fé em Deus antes que tudo se finde ele vai passar mais de uma vez por ali. O caminhão tanque é a salvação, é tudo na vida, e até aquilo que ela não precisa.

O carro-pipa vem chegando, é festa, é encantamento, é nuvem derramando água por uma torneira. E vem cheio, assim todo mundo pensa. Vem rangendo pela curva, vai parando todo furado, com o restinho de água balançando de tanto derramar na viagem. Tanque velho furado, de pingo a pingo foi ficando pela estrada a esperança de muitos.

Mas talvez ele ainda esteja cheio, repleto de vento, de resto de água suja, imunda, doentia, misturada à ferrugem do tempo danoso demais. Lá dentro só há um misto de ferrugem e água, um caldo amarelado e fétido. Quando a torneira é aberta e esguicha ninguém enxerga o que vai beber.

O que o olhar avista é uma danação desgraçada, coisa de não acreditar. Quem já se viu fila de lata que já dobra o mundo, talvez colocada desde a seca passada e tudo a esperar o carro chegar quase vazio e o motorista dizer que não sabe quando passará de novo por ali. E quem quiser esperar já pode deixar sua lata ali marcando o lugar na fila dos mortos.

Mas a verdade é que depois de tanto esperar, um dia o caminhão-tanque chegou esperançando cada olhar. O carro parou, o povo começou a correr, a se alvoroçar, a chegar; a lataria se mexeu, o barulho se alastrou. Um grito dizia que a lata era dela, a outra dizendo que não. Uma briga, um tapa, lata jogada por todo lado. E a mangueira já sendo aberta.

Quando o motorista gritou que quem não chegasse logo ia ficar sem água, então cada uma pegou a lata que encontrou adiante, ainda que não fosse a sua, e correu a mendigar. O restinho da água jorrando forte, passando de boca em boca, cada uma empurrando a outra para não perder a vez. E um pouco mais adiante o mesmo povo a lastimar. E que desespero terrível.

O tempo que a lataria passava enfileirada era inimigo da sorte e da precisão. Entrava dia e dia dormia e cada vez mais a fila aumentando, chegando num tempo que ninguém mais sabia ao certo qual o lugar de sua vasilha. Mas o pior aconteceu quando o tempo foi corroendo a lataria e por baixo a ferrugem foi comendo as beiradas e os fundos, abrindo buracos por todo lugar.

O carro-pipa chegou, o motorista chamou, todo mundo correu, todo mundo brigou, todo mundo achou um jeito de ver a água escorrendo. E a água até escorreu, cada vasilha encheu, até se avistou um sorriso. Mas logo adiante, a lata que saía pesada ia secando, derramando pelo fundo, transformando o sorriso em dor.

Chega corre pra trás, o povo na maior agonia, e o motorista gritando que água agora só na viagem de qualquer dia. Na terra seca o lamaçal de tanta água derramada, de tanto ouro perdido, em cada olhar a desilusão, e pelo chão um mundo de lata jogada que parecia fim de guerra.

A partir desse dia o povo decidiu esperar o carro-pipa de cuia na mão. Tanto servia pra juntar água como pra pedir esmola.


Nota do Editor: Rangel Alves da Costa é poeta e cronista. Mantém o blog Ser tão / Sertão (blograngel-sertao.blogspot.com).

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