Fato social digno de nota e reflexões
Vem de Tupã (SP), curiosa notícia: tabeliã local lavrou escritura pública contendo declaração de homem e duas mulheres de que os três mantêm vida em comum há anos, residem sob o mesmo teto, adquiriram patrimônio em conjunto e comportam-se como integrantes de núcleo familiar constituído a partir de laços afetivos. No documento, eles estabeleceram regras para orientar conduta e deveres entre si, e nortear a aquisição patrimonial do grupo, ditando o que lhes será comum ou não. Invocaram a similaridade entre sua comunhão de vidas e a observada em casais de apenas dois integrantes. Requereram que as autoridades públicas, em questões administrativas ou judiciais, lhes deem tratamento idêntico ao dado pela Constituição, Código Civil e Jurisprudência às uniões estáveis heteroafetivas e homoafetivas. A par de qualquer debate moral sobre a poligamia, que, na prática, é a situação em que vivem essas três pessoas, não deixa de ser interessante voltarmos nossos olhos para o caso como mais um fato da vida que, certamente, não é isolado, embora a discrição das pessoas na situação impeça que mais notícias a respeito venham à mídia, e que sinaliza para mais uma distensão do conceito de família ou entidade familiar no tecido social brasileiro. Não é de hoje que o conceito de família no Brasil vem se distendendo. Desde a promulgação da Constituição de 1988 a definição arcaica de família, como aquele núcleo formado por homem e mulher formalmente casados e seus respectivos filhos, passou a compartilhar espaço, no próprio texto constitucional, com outras formas de organização familiar, tais como a de homem e mulher informalmente casados e prole (uniões estáveis), exclusivamente por um genitor (viúvo ou divorciado) e seus filhos (“família monoparental”), a de avós e seus netos, a de tios e sobrinhos, ou apenas de irmãos entre si, na ausência ou inexistência de seus pais. Fora dos textos legais, nos últimos vinte anos, mídia, doutrina jurídica e jurisprudência brasileiras noticiam outros arranjos familiares. As “famílias mosaico” (formadas por dois indivíduos provenientes de outras uniões desfeitas que constituem nova união entre si e trazem consigo, cada qual, sua respectiva prole da primeira união, tornando irmãos por afinidade crianças e jovens que não guardam vínculos consanguíneos) e as “famílias extensas” (reunindo, por exemplo, pais, seus filhos e avós sob o mesmo teto, em comunhão de vidas afetiva e econômica). Em comum entre esses núcleos familiares, o sentimento de afeto e de pertencerem-se uns aos outros os integrantes da relação, de que o núcleo é o ninho em que seus integrantes sentem-se seguros e confortáveis, de que ali têm espaço para se realizar e se realizam seus projetos de vida. O Constituinte, na Carta Magna, quis amparar esses grupos, reconhecendo-os como entidades familiares, e ordenando ao Estado e às autoridades que lhes dediquem especial atenção e proteção, por entender que é no seio da família que o indivíduo se realiza e deve encontrar a máxima expressão de seus direitos humanos e de sua dignidade. Há oito anos, resultado de uma atitude que começava a se espraiar, embora ainda tímida e esparsa por vários pontos do país, conhecemos um casal de rapazes que desejava documentar seu relacionamento estável e resguardar contratualmente direitos atrelados à sua união. À época, como bem sabe o leitor, a jurisprudência a respeito das uniões homoafetivas ainda era tímida, estava muito longe de equipará-las às uniões estáveis e entidades familiares protegidas pelo Estado e de dar-lhes a mesma proteção. Quando muito, na lacuna da lei, reconhecia-as como sociedades de fato, aplicando friamente regras do direito comercial e empresarial em caso de sua dissolução litigiosa. Havia, ainda, o problema da resistência de grande parte dos cartórios de notas em se dispor a tomar as declarações dos envolvidos em uniões estáveis homoafetivas em escrituras públicas voltadas à documentação delas e à busca futura de seu reconhecimento jurídico pelas autoridades, caso fosse necessário. Todos sabem que o documento público é visto, principalmente nos meios oficiais, como prova mais consistente de seu conteúdo do que o documento particular. Para que leitor tenha ideia da resistência dos tabelionatos a lavrar escrituras desta espécie na época, dos cinco cartórios de notas de Ribeirão Preto, apenas um, em atitude pioneira na cidade, dispôs-se a tomar escritura das declarações daquele casal em união estável homoafetiva. A justificativa para admitir a lavratura do documento, dada pelo tabelião responsável, foi das mais simples (lembrando que, como dizia Leonardo da Vinci, “A simplicidade é o último grau da sofisticação.”) e juridicamente correta: “A Constituição Brasileira nos proíbe, como delegados do Estado, de negar autenticidade aos documentos que se pretendam públicos.” Curiosamente, a mesma - e correta - justificativa jurídica dada pela pioneira tabeliã de Tupã para dispor-se a lavrar a escritura de “união estável a três”, referida neste agosto de 2012 pela mídia. Quase uma década se foi desde o caso daqueles rapazes em união homoafetiva. Aos poucos, tabeliães foram cedendo e admitindo lavrar escrituras versando sobre uniões homoafetivas. Na mesma toada, casos novos dessa espécie de relacionamento aportaram ao Judiciário; e entidades representativas dos homossexuais e defensoras dos Direitos Humanos bateram à porta de nossa Corte Constitucional, buscando reconhecimento dessas uniões como entidades familiares e proteção estatal. Em 2011, foram bem-sucedidos nesta empreitada. Agora, trio de pessoas bate às portas de cartório e consegue ver tomada escritura de suas declarações no sentido de que se consideram, em poligamia, um núcleo familiar. Buscam regulamentar sua vida prática, preservar direitos e verem-se no futuro, caso necessário, protegidos como entidade familiar. Só os fatos e o passar do tempo, a evolução da opinião pública e costumes a respeito e a jurisprudência que for produzida sobre casos semelhantes dirá se pessoas assim convivendo serão vistas e protegidas como núcleo familiar. Observemos. Novidades a respeito certamente surgirão ao longo dos próximos oito ou dez anos. Nota do Editor: Gilberto Bendini de Pádua (gilberto@stoche.adv.br) é advogado sócio de Domingos Assad Stoche Advogados, de Ribeirão Preto (SP).
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