Fomos ao quintal verificar as espécies de musgos que nossas árvores abrigam. Há dezenas deles, cada um com um verde diferente de papel crepom. Olhando de perto, você percebe as espécies minúsculas, cada uma delas digna de estar ali, ocupando seu espaço próprio, sobrevivendo no meio dos musgos gigantes. Este é um exercício de adaptação à nova vida. Fico surpreso com tua dificuldade em aproveitar todas as maravilhas da nossa pequena chácara. Com esta idade, num local como este, eu e meus amigos estávamos rolando na grama, catando caramujos, capturando pesca-pescas, caçando sapos. Mas você se acostumou à cidade, ao brilho dos shoppings, das lojas, das avenidas. Aqui não temos cinema, mas temos as estrelas que piscam a milhões de anos-luz. Nossa TV ficou com tuas irmãs em Curitiba, mas temos auroras magníficas, crepúsculos emocionantes. Depois da chuva, os pássaros fazem um circo em frente à nossa casa. Siriris, tesoureiros, bem-te-vis, chupins, tico-ticos, canários, jeticões, pica-paus, gralhas, corruíras, sabiás, joãos-de-barro, todos se perseguindo mutuamente, não se sabe se para disputar as formigas de asas, para garantir o nascimento das novas gerações, ou para simplesmente se divertir no frescor da tarde. No meio deles, de repente, apareceu um joão-de-barro sem rabo. Com certeza foi peloteado por um desses meninos caçadores, que passam aqui em frente armados de estilingue e bocó a tiracolo. Sujos de lama, calças remendadas, felizes como eu já não imaginava possível. *** Eu chegava da escola, almoçava, tirava o uniforme, vestia o calção, a camiseta e a conga e ia para o campinho. De lá saíamos explorar as matas, que ainda vingavam nos arredores da cidade. Para mim valiam as novas paisagens. Para meus novos companheiros valia o número de passarinhos embodocados. Ouvia-se um piado distante e a adrenalina sozinha encarregava-se de fazer o resto, conduzindo-os na direção certa, na pista do condenado. Alguns a gente pegava na arapuca. Sabiá, por exemplo. A sacanagem começava com as minhocas, iscas do pássaro. Amarrávamos com barbante sob a arapuca, elas ficavam tentando fugir, se enrodilhando, chamando a atenção do sabiá. Ele vinha, arisco, puxava a minhoca com o bico, negaceava, desconfiado, saltava para fora da arapuca, espiava ao redor, não via nada e voltava, puxava a minhoca, uma, duas vezes, com mais força, a minhoca sem querer puxava o barbante que a amarrava no pauzinho, o barbante puxava o pauzinho de armar que finalmente puxava para baixo, para cima do sabiá a arapuca. Era mais que o terror para o bichinho. Era o fim da vida, e ele sabia. Ficava se batendo lá dentro, até que ali se enfiava a mão do caçador, e procurava, ia encurralando num canto o assustado que, sem saída, guinchava, bicava os dedos que oprimiam, mas o tamanho dele era de pouca força, mal conseguia fazer cócegas. Depois de capturado o pássaro, os caçadores lhe amarravam numa das perninhas uma bomba de São João, acendiam e soltavam. Sabiá voa baixo, mas quando foge vai para cima, fazer o reconhecimento do chão. Ele ia, livre, apressado em fugir da morte que deixava em terra, e ia, perfeito em seu vôo, belo, e bum! as penas se esfarelavam, vinham caindo, lentamente, ainda no meio da fumaça, como neve colorida sobre o nosso riso. Depois de uns fracassos por causa de uma pontaria que não acertava nada, e juntando a isso as barbaridades que via meus amigos fazendo com os bichos, comecei a ir junto apenas para espantar. Na hora que um deles ainda estava fazendo a mira eu atirava, buscando acertar os galhos da árvore, com intenção de fazer barulho e avisar o perigo. Os caçadores ficavam indignados e começaram a me ignorar. Era a primeira vez que eu sentia o gosto amargo da indiferença. Comecei a achar que eles guardavam segredos. Parecia que sempre tinham um plano, algo que os sustentava ilesos da agonia, do questionamento. E eu, ou fazia parte de turma de forma integral, seguia todas as suas normas, ou simplesmente não existia para eles. Mas em casa não tinha nada. Depois da aula, se ficasse em casa o pai chamava e arrumava-me algum serviço no depósito de batatas. Minhas irmãs brincavam de casinha. Minha mãe, professora aposentada, lia e bordava. Os mosquitos zuniam, as cigarras entoavam ao longe sua sirene fúnebre. Minhas pernas começaram a ficar moles. Entre o tédio e as maravilhas do inferno, optei temporariamente por estas. Logo que comecei a matar, gostei. Não é possível explicar isso. Ninguém jamais dirá o que é aquele gosto de colocar as mãos nas plumas ainda quentes, embebidas em sangue da ave caída. Os mestres da vida estavam lá, no meio das árvores, fazendo coisas que não podíamos fazer, num mundo que não era nosso, o dos ares, donos de cores que não eram nossas, e caçar um deles era um grande feito. Sentíamo-nos vencedores, pois abatíamos aqueles que faziam piruetas no ar, tornávamo-nos donos de suas vidas e de suas cores. Os passarinhos eram a coisa mais linda que existia em nossas vidas. Tanto os admirávamos, tanto os adorávamos, que precisávamos tocá-los. Assim nos tornávamos donos do seu vôo, dos seus lugares impossíveis. Eram as nossas jóias e, se havia um meio de possuí-los, não haveria argumento que nos desviasse. Hoje os vejo com ternura, admiração e inveja. Mas já não sei nada sobre eles. Não sei mais senti-los nas tardes de chuva, quando uma tempestade nos pegava no meio do mato e, já encharcados, esgueirando-nos sob as árvores úmidas, seguíamos atentos, o estilingue armado, atrás do canto de um pássaro triste. *** O joão-de-barro ficou nas árvores vizinhas, mal alcançando os galhos mais baixos, catando insetos no gramadão. Com o passar dos dias foi emagrecendo, perdendo a cor, escurecendo. Encontrou abrigo debaixo da sua casinha de bonecas. Hoje à tarde saímos à captura do infeliz, para tentar curá-lo. Encurralamos o bichinho num canto da casa, e ele mal reagiu com umas poucas bicadas em meus dedos. Tinha várias marcas de chumbo fino no traseiro, com certeza procedentes de um estilingue, ferindo os ossos salientes. Passamos um merthiolate e providenciamos como gaiola o cesto de roupas, enquanto sua mãe está viajando e não nos mata por essa iniciativa reprovável. Catamos umas minhocas, dependuramos num fio para ver se ele se anima e come um pouco, jogamos uns pedaços de salsicha, cenoura, coco, mas ele não quer nada. Perdeu a liberdade, razão de sua existência, algo precioso demais para poder pensar em comida. Ficará engaiolado até amanhã. Se não comer nada, será largado novamente no mundo cruel, à sua própria sorte. Temos o azar de encontrar esses bichos maltratados, como aquele quero-quero na praia, em setembro. Uns garotos malvados haviam quebrado sua asa. Depois de todas as tentativas para recuperar o membro avariado, tivemos de amputá-lo. Passamos as noites chuvosas da última primavera pensando onde estaria abrigado nosso amigo, que havia perdido os ares. O joão-de-barro não perdeu as asas, mas, sem cauda, perdeu a direção. E eu não sei, não lembro, se um pássaro tem a capacidade de regenerar as penas do rabo. Acordamos tarde nesta manhã. Corremos ver o joão-de-barro, mas ele estava durinho dentro do cesto. Você providenciou a sepultura, pediu-me para fazer uma cruz de madeira. Consenti, providenciei o objeto, mas não fiquei para assistir ao funeral.
|