De agora em diante, para desafogo de uma vida editorial que sufoca os estudos sociais no limbo dos restritos espaços acadêmicos e dos círculos bem pensantes, o Brasil dos tempos pétreos de Lula já tem o seu libelo antibélico tão veemente quanto "Os Sertões", de Euclides da Cunha, lançado em 1902, e de análise histórica e social tão percuciente - embora não menos polêmica - quanto "Casa Grande & Senzala", de Gilberto Freyre, editada em 1933. Trata-se, para a euforia de quem quiser enfrentar suas 956 páginas, do monumental "Guerra Civil - estado e trauma" (Geração Editorial, São Paulo, 2004), de Luís Mir, um livro de difícil catalogação, visto que é muita coisa ao mesmo tempo: história, sociologia, jornalismo, análise crítica, denúncia social e, de certo modo, drama impiedoso com proporções de tragédia. De início, diga-se que Luís Mir não é nenhum novato: seu livro anterior, "A Revolução Impossível" (Editora Best Seller, São Paulo, 1994), trabalho de pesquisa inexcedível, tornou-se um clássico e obra de consulta obrigatória para quem deseja honestamente entender os bastidores da luta da esquerda armada no Brasil, em particular quando revela os subterrâneos da guerra suja que pretendia fazer do Brasil, tal como a Rússia e a China, o terceiro pólo da revolução socialista mundial. Pois é este escritor diligente e infatigável, de estatura moral única, que desnuda com precisão e metodologia criativa a guerra civil indisfarçável que hoje assola todo território brasileiro, notadamente as periferias urbanas e as favelas (que nascem com vigor a partir da guerra republicana de Canudos), a sacrificar, a cada ano, segundo dados estatísticos mais confiáveis, algo em torno de 150 mil pessoas - na sua maioria constituída de pretos, mestiços, pobres e marginais, sem excluir, é claro, "branquelos" e sararás. O livro tem a ventura de abarcar o tema em plena evolução. Para Luís Mir, o responsável irrecorrível pela carnificina que consagra a guerra civil (com requintes de genocídio) no País é o Estado. Ele parte de levantamento de documentação histórica contundente para nos revelar, por exemplo, que em quase três séculos de sistema escravocrata o Brasil importou da África perto de seis milhões de negros, adotando, posteriormente, nos últimos cinqüenta anos de regime imperial, a política de "branqueamento" étnico planejada oficialmente, que possibilitou a imigração de mais de cinco milhões de europeus, na sua ampla maioria beneficiada com terras, empréstimos, educação e status de cidadania - privilégios sonegados, também na República, aos escravos e seus descendentes, exatamente aqueles a quem o Estado devia reconhecer com os mesmos direitos, visto que eles ajudaram a erguer o Estado-nação. (A propósito, pode-se argüir a tese, como fazem alguns autores, de que uma minoria de imigrantes europeus trazia consigo conhecimento técnico que possibilitaria o País a entrar na era industrial - o que de modo algum altera o descaso do Estado). Apoiado em tal constatação o autor, em 10 capítulos de andamento vertiginoso, traça o painel histórico de como, a partir do massacre preliminar dos indígenas, a vasta população de negros, mestiços e pobres, para além de espoliada, vem sendo brutalizada por um aparelho estatal coercitivo e arbitrário, o mais das vezes escorado na omissão (e, às vezes, na cumplicidade) de uma elite cultural e política crescentemente privilegiada, que se mostra (ou se faz de) impotente até para entender sem a impostura das facilidades ideológicas toda a extensão moral da hecatombe. Com efeito, o ambicioso estudo de Luis Mir responsabiliza o Estado como o principal agente de promoção da política de balcanização (nomeadamente étnica, social e econômica) que trucida a população indigente nos morros e nas favelas, ao apontar de forma incisiva que ela "oferece padrões de vida crescentes àqueles que estão dentro dos grupos possuidores do poder central do Estado e da economia, somente acessíveis aos membros das castas superiores, usando em benefício próprio os recursos que lhes estão tradicionalmente disponíveis: renda, saúde, privilégios sociais e educação". Mas o livro de Luís Mir, para maior riqueza do leitor, não fica só na pertinente denúncia da guerra civil que se trava no cotidiano nacional. Na sua segunda parte o autor, que é pesquisador e especialista em atendimento médico ao trauma, descortina panorama enciclopédico e instigante do quadro hospitalar brasileiro e do modo precário como o Estado, em meio ao trauma geral, atende suas vítimas. Nele, o autor realça o papel da figura do médico, em especial do médico-hospitalar, a quem qualifica com o epíteto adequado de "Combatente desarmado". Para dizer o mínimo, desde o Juramento de Hipócrates talvez nenhum documento trate com tanta propriedade os haveres e deveres éticos dos profissionais da cura. Para os que estão realmente empenhados em aprofundar o conhecimento crítico em torno do quadro social que nos circunda, recomendo com entusiasmo a leitura urgente de "Guerra Civil - estado e trauma". Poucas obras, no Brasil, se é que elas existem, estão tão bem capacitadas.
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