Nossa visita ao cemitério não foi planejada. Você queria apenas passear, e isso significa deixar o automóvel em casa e sair a pé. Dentro do veículo só se pode olhar, mas a pé você pega a paisagem, ou, como dizem os acadêmicos, você interage com o mundo circundante. O que de fato não sabemos, nestas horas, é de onde aparecem o Simba e a Cindi, seus cães. Basta colocar o pé na rua e cá estão eles em nossos calcanhares, farejando aventuras. Sua presença sempre torna nossas pequenas viagens pelo bairro mais emocionantes e desastrosas. Na primeira esquina invariavelmente pegam briga com uma matilha de rueiros e se vêem em maus lençóis. São criados dentro de casa, ingênuos e abobalhados, apesar de inteligentes e carinhosos. Simba, basta encontrar um cão desconhecido, vai-se aproximando com o rabo entre as pernas, desejoso de uma nova amizade, porém ciente de que pode levar uma surra, como tantas que já levou. Cindi também quer se aproximar, mas os cães logo tentam cobri-la, como dizem os veterinários, isto é, querem transar com ela. Você fica furiosa e procura enxotar os candidatos. Eles não se afastam. Mas Cindi tem uma técnica boa, e não se deixa usufruir. Se o desconhecido vem por trás, ela senta. Ainda que o galã seja forte, não consegue levantá-la. Ao avistar os telhados dos túmulos mais altos, você pede para entrar, e concedo. Há mais de um mês você está querendo conhecer o cemitério, então, vamos lá. Quem sabe esteja na hora da Jade ver de perto a mansão dos mortos, reflito. Desde que viemos morar neste bairro, temos de passar todo dia pelo campo santo. Sinto um ligeiro desconforto, principalmente porque meu corpo já começou a enferrujar. Está precisando de exercícios, mas deixo-o abandonado ao mofo. Parece que viver ou morrer é indiferente, principalmente quando os ombros estão pesados, cansados após as lutas de cada dia. Vejo os jovens e não compreendo por que sorriem, por que dançam e cantam, se um dia, como eu, todos vão morrer. Talvez a resposta seja muito mais suave, generosa e reconfortante do que parece. A resposta caminha com os teus pés, que são inocentes e completamente cheios de esperança. É você a senhora do tempo, dona do agora, linda caminhante de olhos negros. Agora já anda pela vizinhança, descobrindo caminhos que jamais pisarei, enfrentando situações que a mim não será dado saber. Percebo pelos teus movimentos, tuas palavras, que situações aconteceram, elementos novos entraram em tua vida, mas não sei em que quintais, em que momentos. Algumas vezes me vem uma necessidade de retomar o controle sobre tua vida, saber todos os detalhes, visualizar os teus passos, filtrar tuas dores, acompanhar teu crescimento. Mas conformo-me pensando que o abraço matutino é suficiente, as histórias que nos contamos antes de dormir, as nossas brincadeiras de danças e correrias. Teu maior prazer é fazer compras na bodega. A mais inesquecível das vezes foi a primeira. Era tarde, a criançada batia bola na frente da casa. De repente me veio a necessidade de tomar um café, e, junto com ela, a preguiça de deslocar-me até a venda para buscar o pó, que estava em falta na nossa despensa. Pedi e você obedeceu imediatamente. Ao apontar no portão, todas as crianças pararam para ver tua passagem. Sentindo-se observada, você encurtou o passo, quase parando, mas foi, devagar, na direção da porta escura da mercearia. Olhou dentro, como querendo reconhecer algum perigo, esperou um instante, ainda com todos os olhares aguardando o desfecho. Finalmente se decidiu, entrou no escuro e lá ficou por uns eternos dois minutos. Em seguida apontou na porta, segurando o pacote, aparando a língua entre os dentes, e veio. A travessia da rua novamente foi observada e silenciosamente aplaudida por todos que assistiam ao espetáculo. Estava vencida a etapa, talvez a mais difícil da tua vida. Daquela hora em diante tudo ficou mais fácil para você, e mais difícil para teus pais, que têm de respeitar tuas conquistas, tua liberdade. Também temos de nos preocupar e cuidar para que um raio, ou um caminhão não desça sobre teu corpinho frágil. Há tanta gente no sepulcrário! Um deles nasceu em 1870, morreu em 1953, e ali está sua fotografia, um homem que existiu fora do nosso tempo. Quando nascemos ele já não respirava, ou respirava num outro mundo. Você me pergunta o que é isto, esta cidade de túmulos. É aqui que as pessoas vêm quando morrem, explico. E o que é isto? É a fotografia da pessoa que morreu. Por que, pai, por que colocaram a fotografia da pessoa aqui? Para lembrar. Por que lembrar? Porque as pessoas gostam de lembrar os mortos. Por que a gente morre, pai? Vamos andando por entre os túmulos, alguns bem cuidados, cheios de flores, marmorizados, outros deixados à vontade do tempo, que se encarrega de cobrir de musgos e fuligem a morada dos nossos ancestrais. Por que a gente morre, pai? Simba e Cindi nos acompanham no labirinto de túmulos, procurando gatos. Mas aqui não se criam bichos domésticos. Foi uma tolice trazê-los juntos, agora eles sobem nos tampos dos túmulos, e você acompanha. Ei, desçam daí. Por que, pai? Por que não é nosso. De quem é, pai? É desse pessoal aí, das fotografias. Tantas perguntas que não sei responder. Como posso te explicar a morte? Fico imaginando todos eles. O que faziam quando estavam vivos? Será verdade que os maus foram todos para o inferno? E aqueles que freqüentaram igrejas e rezaram... foram de fato para o céu, para o mundo das delícias? A descendência é a continuação da vida, digo a mim mesmo, vendo você peraltear entre as lápides. Deixo a cargo de uma criança de três anos a minha salvação. Através de você, minha vida terá futuro. Imagino como serão os meus descendentes, aqueles que virão através da florescência do teu corpo. Talvez daqui a cem anos meu tataraneto descobrirá urânio debaixo da nossa casa. Quem sabe minha tatataraneta ganhará um prêmio literário internacional. Ou, quem duvida, será que meu bisneto não será preso por tráfico de entorpecentes? Que tipo de pensamentos meus descendentes produzirão, que espécie de sentimentos os conduzirá? Estarão felizes? Terão ao menos uma vaga noção do que estivemos fazendo nestes selvagens anos de dois mil e cinco? Quase duvido. A cada dia se tornam mais raros os investigadores da história, e talvez por causa disso os homens se mostram tão arrogantes. Na verdade, somos tão inocentes, tão ingênuos! Como podemos ser castigados, se nem ao menos compreendemos o que seja o mal, ou o bem!? Sequer sabemos o que estamos fazendo aqui, sequer sabemos o que somos! Todo dia, quando olho no espelho, penso "não é possível! não é possível que existo! mas se de fato existo, não é possível que um dia deixarei de existir!". Por que a gente morre, pai? Não sei, filha. Seja como for, a verdade é esta: a gente morre, e por mais insuportável que seja essa notícia, ela é a única verdade duradoura, que jamais foi vencida, nem pelo tempo, nem pela ciência. Quando saímos à rua, percebo que você está tranqüila, como se acabasse de deixar para trás um parque de diversões.
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