Hora de pensar, pensar. Hora de não pensar, ligar a televisão - essa fabulosa caixa hipnótica. Aperte o power do aparelho e acione o off do cérebro. Renda-se ao vício paralisante, entregue-se ao esvaziamento mental. Mas a culpa não é toda da TV em si. Há todo um clima ao redor que induz ao não-pensamento: o cobertor e sua pelúcia acolhedora, a meia-luz do ambiente, a musculatura relaxada - tudo isso junto já é um pré-estado Alfa. Uma vez nesse estupor, é assistir ao desfilar de pastores em seus púlpitos, calouros se esgoelando, falsas loiras saracoteando seus predicados de silicone. Sem falar dos televendedores, a uma velocidade de oitocentas palavras por minuto, madrugada afora apregoando de títulos de clube a aparelhos ortodônticos. Mas o ritual nem sempre foi assim, indolente e passivo. Tempo houve em que era preciso ginástica para gozar das delícias televisivas. Quando a TV não pegava, os fantasmas apareciam ou os chuviscos aumentavam, deflagrava-se uma complexa operação que envolvia no mínimo duas pessoas. Uma plantada em frente à caixa, a outra virando o cano da antena, no quintal da casa. - Melhorou? - Não! - E agora? - Continua ruim. - Assim tá melhor? - Espera um pouco... volta pra onde estava antes. - Assim? - É. Dois artefatos, hoje em desuso, orbitavam em torno dela: o conversor de UHF e o regulador de voltagem, também conhecido como transformador. Controle remoto não tinha. Nem precisava - eram só cinco as opções disponíveis. A então TV2 Cultura (canal 2), a Tupi (canal 4), a Globo (canal 5), a Record (canal 7) e a Bandeirantes (canal 13). Com o advento do cabo e das miniparabólicas, a ordem é zapear. Então... (zap) Você pode perder até seis quilos em duas semanas. E não é só isso: fazendo agora seu pedido você ainda ganha este maravilhoso... (zap) - Mas me diga uma coisa, dona Antonieta. E agora, como é que está sua vida hoje? - Ah, hoje o meu lar é abençoado. Como do bom e do melhor, tenho 2 padarias, 3 postos de gasolina... (zap) - Chegou a hora de você saber de toda a verdade. - Onde é que você está querendo chegar? Do que você está falando? - Maria Helena... Maria Helena... é sua filha! (zap) Só seis parcelinhas de setenta e quatro e cinquenta, no cartão. (zap) Ohhhhh yes.... ohhhhh... hum, hummmm... oh yeeeeeeessss... ahhhh!!!! (zap) Foi sem querer querendo! (zap) Daqui a pouco a gente volta. Não sai daí. 1284 zaps depois... Os olhos pesam, a cabeça pende molemente para o outro lado da almofada. A mão deixa cair o controle no chão. Aí você acorda, assustado com o barulho. Desliga a TV, apaga a luz, se ajeita sob as cobertas. Tarde demais: o sono se foi. Enquanto ele não volta, você liga a televisão.
Nota do Editor: Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário em Campinas (SP), beatlemaníaco empedernido e adora livros e filmes que tratem sobre viagens no tempo. É colaborador do jornal O Municipio, de São João da Boa Vista, e tem coluna em diversas revistas eletrônicas.
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