Valdo acordou mais cedo do que os outros dias. A noite havia sido ruim. Um calor dos diabos, abafado, sem um ventinho sequer que pudesse entrar pelas frestas condicionadas das paredes de madeira do seu quarto. Era mais ou menos cinco da manhã. Valdo levantou silenciosamente para não acordar seu filho e sua esposa que dormiam tranquilamente. Sua mulher ainda roncava. Sim, embora ela não acreditasse quando ele dizia, mas ela roncava. Não aquele ronco estrondoso e avassalador, mais um burburinho, como um pequeno serrote sem corte em uma madeira dura, que atingia alguns pregos de vez em quando, emitindo um chiado estranho e incômodo. A mulher gostava de dormir na escuridão total, embora ele preferisse alguma luz ligada, seja a do banheiro ou algum abajur, pois se sentia um pouco desconfortável, meio sufocado, pra não dizer um pouco amedrontado, um cagão, como dizia sua esposa sem pestanejar. Mas como quem mandava era ele (pelo menos era o que dizia no boteco) procurava se encolher feito um cãozinho acuado, se esquecer do breu que o envolvia e dormir. Pé ante pé lá foi tateando aqui e ali, quase deixou cair a antena da televisão e quando saia do quarto seu pobre dedão, já um tanto magoado por seu sapato gasto e apertado, topou com uma pontinha do rodapé. Milhões de palavrões brotaram da veia do dedão e foram se juntando a outros, subindo numa velocidade estonteante, pelo estômago, passando pela garganta, mas quando chegaram a sua boca, a preocupação em acordar, além, de sua esposa e seu filho, todos os habitantes do planeta foi maior, restando apenas alguns sussurros impublicáveis. Havia começado mal o dia. Ainda mancando preparou o café, comeu um pão com banana, pegou sua marmita, subiu em sua bicicleta e foi enfrentar os seus 20 quilômetros de pedaladas diárias. O dia não fora de todo ruim, apesar de seu dedo ainda latejando, consegui trabalhar bem. Valdo era pedreiro. Ficou meio amedrontado em trabalhar, pois havia começado mal o seu dia, dando uma topada e quase decepando seu dedão. Era um mau sinal, mas tudo transcorreu bem. Não martelou o dedo, nenhum tijolo caiu sobre a sua cabeça. Até aquele momento tudo dez. Eram cinco da tarde quando deixou a obra. Ainda fazia calor. Com o horário de verão o sol ainda estava implacável. Só pensava em chegar a casa, sentar embaixo da goiabeira e tomar aquela loirinha que ele havia deixado sob o congelador. Rodado os primeiros cinco quilômetros sob o sol abrasador o pneu da bicicleta furou, era só o que faltava pensou. Como não tinha remendos nem ferramentas levou a bicicleta na mão mesmo e foi caminhando. Só próximo a sua casa encontrou um borracheiro. Já eram quase seis da tarde. Chegou à borracharia, chamou, chamou incansavelmente. Estava aberta, mas parecia abandonada. Apenas um cachorro vira-latas sarnento dormia em cima do que parecia um tapete velho de carro. Quando ia desistindo eis que aparece o borracheiro. Típico. Caminhava como se estivesse acompanhando o enterro do cunhado. Um toco de cigarro no meio dos dentes amarelados, uma barriga tão saliente quanto uma gravidez de quíntuplos no nono mês de gestação. Valdo mostrou-lhe o pneu murcho da bicicleta. Sua reação foi tão cheia de energia quanto uma lesma congelada. Após aquele conserto de uma nota só, Valdo subiu em sua bicicleta e lá se foi. Cem metros depois caiu a corrente. Aquele borracheiro bem disposto e filho da boa vontade havia deixado a roda frouxa. Teve de sujar as mãos de graxa. Até chegar a casa, para desespero e irritação de Valdo, a correia caiu mais umas quatro vezes. Bicicleta nas costas, mãos encardidas, dedão do pé latejando, ego dolorido, subiu o morro e chegou a sua casa abençoada. Empurrou a bicicleta no porão, prometendo que mais tarde daria um jeito nela, lavou suas mãos no tanque, abriu a porta e deu de cara com sua sogra. Sobre a mesa pode ver sua ex-loirinha, que havia reservado para o final daquele dia. Olhava para a sogra e para a garrafa vazia de cerveja com a cara mais abobalhada do mundo. Só pôde escutar as últimas (infelizmente não as derradeiras) palavras da sogra: - “Oi genro querido, tava tanto calor que eu tomei uma cervejinha tá bom?!”
Daí compreendeu o sentido daquela topada.
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