Creio que todos já assistiram ao filme “Advogado do diabo” (1997), dirigido por Taylor Hackford. No correr da trama, o advogado Kevin Lomax (Keanu Reeves) pergunta a John Milton (Al Pacino), porque ele optou pelo trabalho com as leis. E este respondeu, com um sorriso malicioso: porque a lei nos permite fazer tudo. Nunca esqueci essa passagem. Não sou um especialista da seara das leis. Aliás, estou à milhas de distância disso. Porém, como um reles mortal, quando volvo minhas vistas para o mundo hodierno não tenho como não vislumbrar nas palavras do demônio da película citada uma verdade patente sobre os caminhos e descaminhos que estamos trilhando. A letra da lei nos liberta quando esta corresponde à estrutura ontológica da realidade. Ou seja, a lei liberta quando reflete, mesmo que palidamente, a verdade que necessariamente transcende a contingência material. Trocando por dorso, o fundamento último que vivifica a letra é Deus. Sem o reconhecimento de Seu poderio ela é nula. Quando apontamos isso, temos em mente a sanha legislativa que toma conta de todos nós no intento de sempre desejar a criação de novas garantias e direitos que, ao invés de assegurar a ordem da liberdade, apenas garante o império da arbitrariedade daqueles que podem esgueirar-se pelas infindáveis fendas do entulho legislativo. Em todas as esferas, há várias vozes pronunciando-se a respeito da necessidade da criação duma lei para isso ou para aquilo, como se criação de novas leis em uma sociedade que desdenha a transcendência da realidade fosse resolver algo. Aliás, para ser franco, esse impulso legislativo nada mais é do que um sintoma da soberba e da vaidade que tomou posse da alma do homem moderno. Por essas e outras que em sua obra “Sobre el poder”, Bertrand de Jouvenel nos adverte para o fato de estarmos muito distante do crescimento da liberdade. Segundo ele, a única coisa que cresceu foi o poder do Estado sobre a sociedade. Seja num regime democrático, seja numa ditadura autoritária ou totalitária, o sentido da história moderna reside no crescente aumento dos tentáculos estatais que regulamentam toda ordem material e moral, orientando as ações individuais em torno do qual se organiza a vida de todos. Tal seu gigantismo que praticamente tornou-se inconcebível a idéia de sua morte. Ora, se não mais é Deus o fundamento último de toda realidade, o que fará às vezes Deste? Ora, é só perguntar: quem foi tomando o Seu lugar conforme Ele foi sendo riscado do horizonte de consciência do homem moderno? O Estado. Aliás, como bem nos lembra Chesterton, um dos fenômenos mais marcantes da modernidade é a divinização do Estado (e de seus governantes) que não media, e não mede, esforços para tornar o seu poder total. Por fim, mais uma vez, não temos como discordar do personagem interpretado por Al Pacino, quando este nos lembra ao final do filme mencionado que a vaidade é o seu pecado preferido (e nosso também). Não é por menos que dia após dia nos perdemos mais e mais em nossa vã tentativa de sermos melhores que o Criador. Não é por menos que o monstrengo Estatal dia após dia está a nos devorar com nosso festivo consentimento.
Nota do Editor: Dartagnan da Silva Zanela é professor e ensaísta. Autor dos livros: Sofia Perennis, O Ponto Arquimédico, A Boa Luta, In Foro Conscientiae e Nas Mãos de Cronos - ensaios sociológicos; mantém o site Falsum committit, qui verum tacet.
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