Em uma dessas tardes gostosas de outono, à sombra da casa velha, na roda dos presentes todos tinham uma tarefa: produzir uma imagem. Alguns riscavam desenhos, outros entalhavam na madeira. Poucos afobados usavam as tintas. Nisso os causos vinham trazendo, entre sorrisos, sonhos, realizações ou inconformismos. Da parte do Mario, tendo chegado do Sertão do Ubatumirim [Ubatuba, SP] onde foi levar uma proposta de oficina cultural (dança de jongo), disse ter recebido “uma ducha fria”. Como assim? “Calma, eu explico: ao chegar naquela comunidade reunida na escola, depois de apresentar a proposta, escutei uns absurdos, inclusive que jongo era coisa dos negros, que da África veio um monte de coisas que não presta, são do inimigo etc. É mole uma coisa dessa? E o pior: a professora concordava com as falas dos presentes!”. Eu interferi, dando a sugestão de alguém procurar a Secretaria de Educação do município. Trata-se de educação, da temática da dignidade humana, do respeito à pluralidade humana (que é inerente à espontaneidade). De acordo com alguém que estudou mais de que eu, espontaneidade é a capacidade humana de iniciar algo novo no mundo, isto é, de agir. A degradação da espontaneidade transforma o indivíduo em fantoche facilmente manipulável, que concorda passivamente com tudo que lhe for ordenado. Destruída a individualidade, destrói-se a pessoa humana. Os demais da roda também deram suas opiniões. Dois ou três dos presentes só escutaram. Eu penso que é um atraso cultural se posicionar contra atividades que permitam vivenciar a pluralidade cultural. A pergunta é: que cidadãos esperamos ao oferecer somente aquilo que as interpretações religiosas permitem? Faz-me lembrar de uma conversa com o velho Suassuna: “O cachorro gosta do osso. Mas sabe porque ele gosta do osso? Porque nunca ninguém lhe deu um filé!”. Nesse instante, parecendo confirmar o rumo da prosa, um cachorro latiu e um gato miou no telhado.
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