Poucos saberão apreciar as águas do Rio Barra Grande, nas suas pedras rolantes, miúdas e coloridas, os cardumes de papa-terras passando rápidas por entre as pernas, as abelhas esvoaçando nos arbustos à beira d’água cristalina, as nuvens de borboletas. O barulho dos gravetos estourando no fogo, o milho verde e as batatas-doces tostadas na brasa, as histórias de cobras e outros perigos dos antigos desbravadores, o orvalho caindo lento sobre a lona do acampamento, o sono consumindo as imagens. A tontura das serras, as nuvens de algodão rosa e laranja enfeitando as encostas ao canto dos primeiros bem-te-vis da manhã. Para um menino de nove ou dez anos, as belíssimas cachoeiras gêmeas, na paisagem aberta da Serra da Esperança, como numa tela de cinema, jamais poderiam juntar-se para compor esse rio que alguns minutos depois estaríamos margeando em busca do melhor pesqueiro. As folhas dos arbustos junto d’água corrente tinham outras formas, algo sempre fresco e vivificante, o cascalho fino arredondado nas prainhas lembravam os velhos filmes de bang-bang, e o vento nas copas das árvores altas descia em golfadas, apanhando desprevenidos eu, meus irmãos e primos, que, alucinados pela farta oferta da natureza, escrutinávamos o fundo do leito do Barra Grande. As traíras, mandis, ferreiros, saicangas e outros frutos do rio saíam debaixo das pedras, carregavam a isca, puxavam o braço dos pescadores, e na força que faziam para livrar-se do engasgo estava toda a emoção da pescaria. Nosso pai carregava uma turma de garotos crescidos, na carroceria do caminhão, sempre que descíamos ao Barra Grande. Caminhar no leito ou nas margens daquele rio, cercado de companheiros que não pensavam em outra coisa senão em aventura, era estar num mundo de magia, que se projetava pelos séculos em nossas mentes juvenis. Eram horas que valiam anos! Nosso rio tinha um cheiro, um sabor, uma lembrança que jamais poderá ser dita, nenhum turista ou naturalista poderá recompor as emoções que vivemos, naquelas noites perdidas no tempo, seguindo pela madrugada nos caminhos da mata, pisando em aranhas e cobras, descendo a encosta para chegar ao melhor de todos os pesqueiros do mundo, que só tinha acesso através de uma longa trilha: o Poço Preto. Isso posto, talvez o leitor possa compreender que eu tenha chorado, já com onze anos de idade, no dia em que meus dois irmãos mais velhos, acompanhados de um colega vindo de Curitiba, não me permitiram seguir com eles numa incursão ao Rio Barra Grande. - Não cabe na cabine - disseram. - Vou na carroceria. - Ta louco, piá. Ninguém vai parar pra te juntar na estrada. - Eu sei me segurar. - E se chover? Como é que vamos botar os quatro na cabine? - Por que eu não posso ir no lugar do Dimas? - Porque eu sou o único que sabe dirigir, tongão. Não encontrei argumento que os demovesse. Não queriam incômodo, isto sim. Sabiam que eu era um menino chorão, que a cada instante enroscava a linha na árvore, espetava o dedo no anzol, dava uma bicuda num toco, e tudo era motivo para lágrimas. Quando vi a picape, recém-tirada-da-loja por nosso pai, seguindo rumo ao norte, desatei num choro desesperado. Minha mãe, que a tudo assistia, apanhou-me pelo pescoço e me pôs no quintal, ali ao lado do galinheiro, com uma enxada na mão. - Vai, Chico. Me carpa todo esse guanxuma pra aprender a não fazer manha na frente de visita. Carpir guanxuma é um castigo para qualquer carpidor do mundo. Talo duro, raiz profunda e tramada, uma verdadeira praga. Mas aquilo era mixaria, quando pensava que poderia estar à beira do meu rio preferido, vendo relampear no fundo do Poço Preto o prateado e o rabo de ouro de uma saicanga braba e a linha vibrando, fazendo arcar a vara. Somente às três da manhã, quando chegaram os pescadores, tive meu primeiro momento de prazer. Uma chuva de verão havia apanhado os valentões lá embaixo da serra. Não puderam sequer jogar as linhas n’água. E o motor mal-amaciado da picape não suportou as derrapadas, os trancos e os barrancos e fundiu ali mesmo, no meio do subidão. O veículo teve de ser arrastado por um trator até a cidade. E meus irmãos ficaram de molho, sem boléia, por uns bons meses, sem direito a falar em pescaria, muito menos em Barra Grande.
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