Algo refoge da lógica quando o direito entra em contradição com a sociedade. E esse descompasso é um fato corriqueiro em todas as comunidades. Estas evoluem, neste momento histórico a uma velocidade estonteante, enquanto o direito permanece petrificado nas letras e conceitos frios da lei e da ciência jurídica. É certo que não poderíamos ter um direito constantemente revisado. Todavia, o descompasso na relação entre o direito e o objeto que disciplina fica gritantemente evidenciado em certas sociedades e momentos. É o caso da sociedade brasileira, no que tange aos crimes culposos, em que o agente não deseja o resultado. Só a circunstância desse "animus" acaba por significar um "bill of indenity" para os praticantes de crimes culposos. No caso de Santa Maria, houve uma tragédia que ocorreu poucas vezes em todo o mundo: mais de duas centenas e meia de jovens mortos. Alinhados "post mortem" numa imagem que uma das mães disse não conseguir esquecer. É possível que o campo de concentração polonês de Auschwitz-Birkenau não tenha exposto essa visão insuportável, num único momento. Com efeito, o bizarro, o incompreensível e inassimilável pela consciência humana é o traço característico desse espectro que a humanidade somente consegue caracterizar no mundo do absurdo. André Breton desenvolveu suas ideias, fundadoras da corrente literária surrealista, impulsionado pela memória de um parceiro morto ao seu lado numa trincheira. O homem se esforça por tentar compreender o insólito, o absurdo, o que se encontra fora da realidade esperada - o surreal. Não logrando fazê-lo, passa a considerar que a vida é o próprio absurdo. Ninguém decreta uma guerra por culpa, mas por deliberação consciente e marcada por vários equívocos, em geral recíprocos. Porém, os condenados são apenas aqueles que incorreram em excessos manifestos, perpetraram crimes de lesa-humanidade etc. Os grandes culpados pela eclosão do conflito, não raro, se transformam em heróis. É um truísmo dizer que o Brasil é país de impunidade. Esta se dá, exercitando uma aritmética do grotesco, muito mais no campo dos crimes culposos que nos dolosos. Um motoqueiro, por dia, no mínimo, perde a vida em São Paulo; quase o mesmo se pode dizer dos pedestres; nos fins de semana e sobretudo com feriados que os prolongam, temos uma média de mais de cinquenta mortos nas estradas brasileiras. E a tolerância zero de nossa lei seca fez baixar em muito pouco esse índice. O fato é que, excetuado o Estado de São Paulo, nossas estradas, por onde trafega uma maioria de veículos inseguros (a pesquisa sobre a insegurança dos carros brasileiros foi recentemente divulgada), formam o pano de fundo desse lastimável estado de coisas. E mencionamos mortes no local, não dos feridos que morreram posteriormente ou tiveram sequelas, desde as mais leves até aquelas que tornam o indivíduo dependente de outros, enfrentando uma sobrevivência depressiva. Os crimes culposos são apenados sem a severidade que seria necessária e por razões facilmente compreensíveis: não se pode tratar do mesmo modo a culpa e o dolo; não se pode jogar em nossos nefandos cárceres o agente de um crime culposo; não raro, este é um provedor de família, como no caso dos motoristas de ônibus, de modo que seu encarceramento, indiretamente, faria a pena trespassar a pessoa do autor do crime, o que é uma heresia jurídica e faria recrudescer nossos problemas sociais. Por outro lado, nosso ordenamento jurídico-penal firma corretamente a presunção de inocência até o trânsito em julgado da sentença condenatória. A comunidade leiga em direito não consegue compreender o princípio; quer a reclusão do acusado imediatamente. Não faz ideia de como é complexo transportar a realidade material para a realidade formal dos autos processuais, e é esta última que ditará a condenação ou a absolvição. O que não está nos autos não está no mundo. E a transposição dos fatos para os autos não é nada simples. Se as palavras matam e o espírito vivifica, o que demonstra a incipiência de nosso processo civilizatório sob o ângulo filosófico, fazem-nos com muito mais energia o inquérito policial, por várias causas, a começar do despreparo educacional de nossos contingentes policiais. Pode-se considerar nada diplomática a assertiva, mas a verdade é que muitos delegados de polícia são advogados frustrados, reprovados no Exame da Ordem por carência de conhecimentos jurídicos básicos e capacidade de expressão lídima do pensamento. Carnellutti, já nos meandros da senectude, fez a observação melancólica de que todo processo está fadado ao fracasso. Se não é tanto assim, é de se convir que, nesse amplo espectro, a demonstrar que todos, delegados, promotores, advogados e juízes, cumpriram suas missões. E familiares das vítimas têm razão, à exceção de uma mãe infeliz que surtou e desferiu um tapa no rosto de um dos advogados de defesa. Então, quem é o culpado? Não são os homens, são nossas instituições, que muito pouco evoluíram desde que o Brasil se tornou Brasil, com a independência. Nosso Código Penal, emendado e remendado, é de 1940. Nosso sistema carcerário é mais brutal do que o de uma Uganda qualquer e a única certeza dele emanada é a de que não se atingirá a finalidade da pena: a de transformar em cidadão aquele que agrediu a sociedade. No caso sob comento, não se pode esquecer, ainda, da praga da corrupção, que rege as relações entre os particulares e uma burocracia acostumada a fazer vistas grossas ao descumprimento de normas de segurança nos locais de frequência coletiva: que podem não dar em nada ou num morticínio de jovens universitários, ceifando vidas, comprometendo outras, matando esperanças e disseminando a tristeza entre pais, parentes, amigos e em toda a sociedade minimamente consciente. Esse mal - a corrupção - talvez, seja nosso maior desafio. Reside na consciência dos agentes econômicos e dos agentes públicos encarregados de exercer o poder de polícia municipal, estadual e federal. E é o mal mais diluído, mais escorregadio, que só eventualmente vem à tona, em grau mínimo, quando da intervenção da mídia. Prédios de diversão como esse em que se deu a tragédia gaúcha continuarão a existir como verdadeiras armadilhas, enquanto não houver uma profunda mudança de mentalidade e cultura daqueles que fazem o cotidiano de nosso País. Em resumo: nosso direito está em descompasso com um estado e uma sociedade carente de instituições adequadas e de valores morais. Nota do Editor: Dr. Amadeu Garrido de Paula é advogado.
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