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Opinião
04/03/2005 - 06h11
Em favor da ética aplicada aos abrigos
Nelson Peixoto - Pauta Social
 

Para refletir sobre os abrigos institucionais, quando não atendem aos interesses da criança de viver em família, convido todos a contrapor uma certa razão assistencialista com uma outra que chamamos de razão do cuidado exigente. Faremos assim uma breve incursão filosófica para ver se é possível ou não o resgate ético dos abrigos.

A postura institucional de manobras salvadoras ou repressoras não garante nem permite vitalizar uma semente esmagada ou uma flor machucada. Como diria Heidegger, "estar no mundo" ou na cultura de massas como "coisa", ou um ente manipulável, não respalda nenhuma experiência verdadeiramente ética. Para tal, precisamos fugir da "institucionalização", porque nela não há acolhimento nem êxtase, não se interroga e nem se compadece. O comando e a obediência legais normalmente passam por longe dos impulsos do coração. A diferença entre "vida em família" e "estadia em instituição" ajuda a perceber a negação ética existente em alguns projetos sociais de atendimento à criança.

Há urgência de avançar no ordenamento dos abrigos ou mesmo superá-los com novas alternativas de amparo e desenvolvimento infantil. A vivência ética é mais premente que o re-ordenamento jurídico, e é recomendação do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) devido aos prejuízos que a institucionalização ocasiona nas crianças e adolescentes pobres e punidos por ficar longe de suas famílias e criadas indefinidamente por guardiões de plantão.

Prestemos atenção aos abrigos, que ainda tratam as crianças em separado de suas famílias de origem, ou em regime de exclusão social ou em espaços punitivos em nome da responsabilidade do Estado. Constatamos ainda que certas Varas de Infância e Promotorias continuam a usar o termo como "menores", "recolhimento", "liberação" e tantos outros que denunciam um paradigma que há muito deveria estar esquecido.

As Aldeias Infantis SOS Brasil, com seu Programa de Família Substituta Permanente, estão conseguindo evidenciar a perversidade presente nos regimes de internamento institucional, graças à Ética do Cuidado aplicável no atendimento às crianças e aos adolescentes excluídos das adoções e/ou aquelas abrigadas sem o direito de uma vida familiar e com necessidade de mãe. Embora mais urgente, que outros profissionais façam a análise da cruel situação em que se encontram os adolescentes em conflito com a lei, e denunciam a aplicação de verdadeiras torturas como medidas de reabilitação.

No caso dos abrigos, entretanto, fiquemos conscientes da negação de vida familiar e as conseqüências da institucionalização de crianças.

A Razão versus o Cuidado

A razão assistencialista pode ser suspeita se for a base primária dos motivos matrizes que condicionaram práticas, palavras, e significações de um determinado momento na história das instituições filantrópicas. Momento pervertido pelo fundamento penal do ex Código de Menores, que parece se imortalizar e impedir alternativas de desenvolvimento infantil que fuja das medidas de internamento. Tratar o "menor" e impedir que este prejudique a sociedade dos bons.

O Cuidado está na Ética como raiz da afetividade, como base última da existência humana. Ética assim vale mais do que as normas jurídicas ou preceitos religiosos. Pois, para atender a criança em seus interesses como prioridade absoluta, teremos que migrar do legal para o existencialmente ético. Por uma lógica religiosa e econômica, algumas organizações do Terceiro Setor, através de seus agentes, podem ainda estar versando uma concepção do ser humano e de sociedade por demais ingênuas, sendo que os pobres estão nas mãos bondosas dos ricos e premiados com o trabalho de tantos. Daí, que a bondade exercida como prática da justiça pode parecer um discurso irreverente. É mais simples ser "bom e caridoso", "racional e religioso" para com os pobres, órfãos e viúvas.

Entretanto, esses "menores" do mundo se tornam objeto de piedade e não sujeito de direitos. Como objetos de assistência social é difícil atender os contingentes de miseráveis e perdidos produzidos pelo modelo predatório de domínio sobre o mundo. Há de se criar alternativas de autonomia e sustentabilidade de amparo infantil de modelo essencialmente familiar. A razão da lógica das riquezas parecia fundamentar a análise da formação da estrutura da sociedade como natural. A inferioridade dos pobres seria normal, sendo que suas penas e desgraças são fatos que precisam acontecer o cenário da salvação.
Para mudar o mundo bastaria que todos os "inferiorizados da condição humana" (menores) fossem socorridos e amparados em suas angústias e dores, e que possuíssem em um abrigo institucional de proteção legal. Entretanto, na contramão do assistencialismo alheio à Ética do Cuidado, precisamos conjugar liberdade/justiça e bondade para se criar novas condições de experimentos humanitários de amparo, assim como aconteceu no após a II Guerra, com práticas nascentes que condicionaram a Proclamação dos Direitos Universais das Nações Unidas para o re-ordenamento do mundo.

Foi nesse ínterim, contemplando a Europa devastada pelo absurdo da guerra, que um cidadão, chamado Hermann Gmeiner, revoltado contra o nazismo, e sofrendo ao observar as crianças destinadas aos campos de concentração ou aos orfanatos, protesta e contesta o modelo de internamento institucional. Para ele, tudo parecia única experiência de negação da vida, caso a criança não ficasse com sua família ou não tivesse o direito de ter uma outra. "Ser um com tudo o que vive! ...a morte desaparece da sociedade das criaturas e a eterna infância torna o mundo belo e feliz!" (Horderlin).

Encontramos o Cuidado como fonte ética e poética para o evento de um trabalho de atendimento em família que se distanciava dos abrigos. Onde se encontrasse uma criança sofrendo, aí se posicionaria um cuidado eficaz que garantiria uma casa e uma família, sentimentos de maternidade e irmandade, pertencimento e comunidade, tais como intuídos e sistematizados pela Convenção de Genebra sobre os Direitos das Crianças e dos Adolescentes.

Em 1967, aportam no Brasil os primeiros a querer vicejar o modelo de atendimento em família, tal como viram na Europa, e que já estava a se estruturar e a se multiplicar em todos os continentes. Imigrantes se contagiaram com uma classe média bondosa, mas também impregnada de preconceitos em relação aos pobres e às crianças das grandes cidades que se industrializavam.

Frente a esse fato desviante, motivado pela razão assistencialista, fez-se urgente recuperar o "ethos" no trabalho das Aldeias SOS. Retorna-se à originalidade inaugural contestatória contra o internamento e retoma-se a prática ética de um Cuidado Responsável e Exigente. Respeita-se a unicidade de cada ser humano como um projeto a se realizar em sua originalidade fora de toda a totalidade redutora de diferenças. "Uma resposta ao rosto que chora, que nos faz uma proposta da qual não podemos mais deixar de atender", como afirmaria Levinas.

Uma criança cuidada através de um projeto individual de vida, longe de abolir a liberdade e enquadrar o sucesso no panorama institucional, toma-se consciência do acontecer dinâmico de cada vida. Possibilita-se analisar sempre a situação específica de cada criança, propor metas e traçar estratégias possíveis para superar problemas e desenvolver habilidades. Sendo que a última meta a ser alcançada seja a integração social e profissional de um filho ou de uma filha e não de um instituído sem nome. Como cada ser humano é vivo e está dinamicamente projetando seu futuro, atenta-se e continuamente mobiliza-se para as áreas emocionais, físicas e cognitivas, a fim de se ter um mapeamento das reações de como sua história passada e atual estão facilitando ou não seu desenvolvimento integral.

O alcance das metas se dará pela abertura que favoreça o acontecer de um caminho novo que se atende e se vigia em vista daquilo que em última análise pretende: EMANCIPAÇÃO como resultado de uma prática de um cuidado eficaz. Enquanto a delimitação do sucesso dos abrigos segue passos rígidos e autoritários, ou as trilhas da permissividade dependente e irresponsável, o projeto de desenvolvimento pessoal de cada criança se efetiva na relação desta com "um pai e uma mãe", com horizontes realistas de esperança.

É nesta sintonia que as Varas de Infância e dos Conselhos de Direitos da Criança e dos Adolescentes devem se orientar. Guiados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), devem atuar como "Equipe de Apoiadores" em favor da família e não como "Equipe de Fiscais" em favor dos abrigos. Técnicos eticamente ousados e sem medo para lutar por Justiça aos pequeninos, a partir do que consta em nossa Constituição Federal: "criança, prioridade absoluta". Que as organizações que se devotam de boa vontade para servir as crianças se encham de fulgores éticos para o reencontro da própria identidade e se ocupem de oxigenar as Varas de Infância e as Promotorias em Defesa da Vida Familiar possível!


Nota do Editor: Nelson Peixoto é filósofo e diretor da Aldeia Infantil SOS de Brasília.

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