Hoje, acordei com vontade de voar, mas me esborrachei nas páginas de um dicionário com os significados do verbo Livrar: Libertar, soltar, demitir, preservar, defender, desembaraçar, desvencilhar, defender, preservar, tornar-se livre, libertar-se, desobrigar-se, eximir-se, exonerar, desonerar, destituir, dispensar, eximir, isentar, prescindir e safar... toda essa concretude me fez cair das penas. Depois de me escarrapachar nesses verbos concretos, acordei atarantado com esse choque de realidade. Numa tentativa de fugir dele, atravessei um verso e acabei atropelado por uma rima rica no final de uma estrofe de um poema de Fernando Pessoa(s). Um sentido não literal para Livrar, me extasiou como uma bela metáfora. Livrar significa: “abastecer” ou “abastecer-se” de livros. Corri, com a imaginação atrás dos olhos, para o livro das definições na tentativa desesperada de encontrar um ponto final para essa minha angústia metafórica. Será que coloquei o ovo de pé? ou não, ele me jogou na vala comum das catacreses. O investigador dos ditames da gramática me estampou, com cara de poucos seguidores, que verbo significa “palavra” ou “palavra que indica ação, fenômeno ou mudança de estado”. Nunca, na boca do povo, ou, num livro de um autor erudito, Livrar significou “abastecer-se de livros”. Acorrentei-me à primeira definição. Eu também me predispus a não seguir investigador algum. Fantasiei minhas análises para brigar contra o insultante sentido literal. Dentro do meu discernimento, uma voz gutural, impiedosa, me bombardeava: verbo não diz nada nesse oceano de denotações, porque as ondas das conotações vestem-no com novas roupagens. Por exemplo: verbo é espada, pode ferir; é faca, pode cortar; é veneno, pode matar; é catarro, pode sufocar; é comida, pode empanturrar; é fogo, pode queimar; é asa, leva a voar; é medo, leva a desesperar; é maquiagem, leva a fantasiar; é água, obriga a nadar; é caminho, obriga trilhar; é leitura, abriga o transformar... Por que, então, “livrar” não pode vestir a analogia de “abastecer-se de livros” ou “abastecer leitores os tolos e/ou os sedentos e/ou famintos de conhecimento e/ou de diversão” a bordo de livros? Leitores são seres estranhos. São famintos de fantasia, um livro apenas não os sacia. São sedentos de tramas, um enredo apenas não lhes mata a sede. Idolatram pessoas que atendem pela estranha alcunha de escribas e/ou escrevinhadores e/ou escritores e/ou autores e/ou poetas e/ou tudo isso junto e muito mais. A maioria deles usa um imaginário escafandro diante dos olhos que lhes permite profundos mergulhos nas linhas e entrelinhas, nadar entre significantes e significados, aprofundar-se nos pressupostos e subentendidos, pesquisar as denotações e conotações... São seres de grande complexidade. Carregam vidas e destinos, quase em êxtase, debaixo do braço. Com os dedos sentem os poetas construírem versos. Sob a criatividade abrigarem as estrofes. Reinventar no poema. Com os sentidos aguçados, desbravam capítulos, para encontrar personagens. A partir daí, pesquisam enredos, para encontrarem, sem fôlego, o clímax da obra e colocar um ponto final na trama. São adoradores da palavra, ela é o seu altar. Identifico o leitor perdigueiro. Esse ama o cheiro dos livros. É capaz de enfiar-se numa biblioteca, livraria ou sebo. Põe-se a perscrutar cada estante. Quando encontra o objeto de seu desejo, abraça-o, cheira-o, enfia-o debaixo do braço, paga qualquer preço e sai. O malabarista é aquele que muda de posição na cadeira. Vira-se para um lado e para outro. Fica de cabeça para baixo. Tudo para não permitir que o ser ao seu lado pegue uma nesga do seu livro. O leitor egoísta confunde-se com o ciumento. Não dá, não empresta e não troca o seu livro. O seu prazer é possuí-lo para, na hora que bem entender, pegá-lo na estante e lê-lo. Mesmo passando fome, não vende seus livros. Abre mão do alimento do corpo, para entregar-se de corpo e alma, ao alimento da alma. O antropólogo vive de buscar obras raras em livrarias. É capaz de ir ao fim do mundo atrás dela. Sua inspiração está em reconhecer cada característica especial. O seu negócio é embrenhar-se por mares nunca dantes navegados. O leitor despudorado saliva diante uma obra, porque não tem o dinheiro necessário para comprá-la. É capaz de agarrar um livro e fugir com ele, mesmo arriscando sua liberdade física. Só acredita na liberdade da imaginação. O leitor faquir não come nem bebe quando arreganha as portas de uma história. O mergulhador é o que submerge nas linhas e entrelinhas de uma página até emergir transubstanciado pelo enredo. Encantado com o que leu. O medroso é o que não quer que a história termine quando passa a acreditar que ela foi inspirada nele. E há outros tantos que seria impossível rotulá-los nesse mundo em que todos recebem um carimbo segundo a conveniência de quem o porta. Ler, dentro de mim, significa viver, morrer a cada final, refestelar-se, enfurecer-se, navegar, viciar-se, completar-se, distender-se... Leitura me alimenta, me retorce, me distorce. Sem livros, adoeço, fico menos humano, menos criativo, menos feliz. Sou um leitor carnavalesco, danço com a musicalidade das palavras, visto as máscaras dos personagens e me disfarço com a sua vida que não é minha, mas passa a sê-lo quando eu e eles nos tornamos xifópagos ou siameses. Aceito, sem me rebelar, o destino que o escriba nos deu. Ler, para mim, é respirar. Essencial. Não ler, é mortal. Empobrece. Sou o leitor guloso, sempre quero mais e mais e mais... a ponto de me embrenhar numa feira para adquirir livros como frutas, como legumes, como hortaliças, porque eles têm cheiro, cor, volume, sabor... Nota do Editor: Prof. Luiz Cláudio Jubilato. Fundador e diretor do Criar – Língua Portuguesa e Redação.
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