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Opinião
22/06/2013 - 12h08
A mudez se acabou e o gigante acordou
Paulo Rosenbaum
 
As faces do movimento nas ruas. Punks, tribos sem vínculos políticos, viciados, trabalhadores e moradores de rua foram personagens dos protestos

O maior inimigo desta vitória não foi ainda identificado. Ele anda no esconderijo sutil, lá, onde sabe que é impossível ser defenestrado. Ficou a espreita por uma geração e meia. Ele não só se articulou para trazer a passividade excessiva, como, impedir que qualquer um descobrisse sua missão central. Preferiu ficar imerso na sombra, o lado escuro de todo acerto. Torcia quieto, não queria que nada atrapalhasse a hibernação coletiva.

A cara deste monstro inominável bem que poderia ser encontrada naqueles gibis velhos. Deveríamos procurá-lo nos antigos romances. Em meio aos personagens sombrios. Alguns admitem terem sentido sua presença em becos sem um pingo de esperança. Ele esteve nas piores guerras, nos massacres sucessivos. Dizem que vigia e estimula as ofensas que cometemos uns contra os outros. Viveu em toda opressão que exercemos sobre aqueles que não podem se defender. Sua última aparição pública precedeu a devastação e depois comandou as sessões de tortura contra a natureza.

Essa aberração nunca esteve longe. Sempre aqui, bem ao lado. Low profile, foi criado em cada casa. Alimentado em cada escola. Mantido em todos os postos de trabalho, em qualquer reunião, nos passeios, nos mercados e na via pública.

O silêncio. Exato, é dele que falamos. Ádito, omissão, interdição do diálogo, apuridar-se.

Há terapêutica? Mas é claro, diálogo, seu nome é diálogo! Também conhecido por interlocução, conversação, debate, parouvelar, cavaquear, discretear.

Mas soube-se que o medicamento, apesar de ser instrumento imprescindível para a democracia, passou gerações inteiras sem ser treinado ou ensinado. Por aqui ninguém compreendeu sua importância. Sua força permanece ignota. Cult para as ciências humanas, só foi isolado para estudo em profundidade uma única vez, em maio de 1968. Enigmático, ninguém das ciências naturais ousou mensurá-lo em joules até que escapou de uma prisão de segurança máxima.

As vozes que agora se ouvem não querem só gritar. Preferem audiência atenta, intensa, prolífica. Não podem mesmo ficar impassíveis quando sentem a farsa. E quem atua no poder não pode fingir. Não pode atuar para fazer parecer que não é com ela. Quem governa não pode dissimular. Ignorar quem fala é como cultivar o abandono. Ainda que não saibam perfeitamente disso, a multidão exige mais ser escutada que obter respostas práticas pelas quais ela luta. Não há culpa e sequer culpados isoladamente. Precisamos consentir: o mal já estava sendo feito há muito. Feito e consumado. Eu mesmo demorei para perceber que não era só o caso de consumidores enfurecidos. Era isso também, mas era mais.

Somos todos, gerações que não sabem conversar. Para abreviar, pode-se dizer que perdemos o hábito. O sucesso dos meios intermediários de comunicação é prova disso. Dependemos de filtros, anteparos, telas e fios. Repararam? Como a TV fala por nós. Como forjamos a cultura inútil que, ganhando vida própria, pode perdurar à nossa revelia? E também o vício nos computadores, as redes sociais, os telefones. Lemos menos. Ouvimos menos. A prosa se encolheu. E quem nos ensinou a falar? Quem explicou que negociar é o caminho para a compreensão? Que o sim pode invadir o não para os devidos acordos. Quem em nossos dias sabe aceitar não? Quem tolera que não se façam nossas vontades?

A ditadura passou sobre todos nós com tratores, ocluiu as bocas dessas crianças. Quem a sucedeu repetiu a fórmula: fez exatamente a mesma coisa. E de paternalismo em paternalismo, as crianças desaprenderam o que dizer, como falar, o jeito de reivindicar.

Para a maioria foi emocionante vê-las ontem passando com flores, improvisos e cartazes rabiscados. Estão tentando reaprender uma arte caçada não só pelos Atos Institucionais de 1964. Readquirir a linguagem que lhes foi roubada por todos estes anos sem liberdade, com liberdade assistida, com o falso cuidado de líderes inúteis. Fomos governados por tutores que, no fundo, não queriam ninguém fora das jaulas, da ignorância, do cabresto.

Por isso mesmo escolher a liberdade é cada vez mais difícil. E mantê-la, o segredo da paz.

Por isso para os velhos quase dói testemunhar como eles todos ainda conservam o ímpeto dos que acreditam, o tino da aventura, o dom de se desdobrar pelas utopias, deslumbrar-se pelo risco, levantar pela fome de justiça adiada, erguer-se do jejum prolongado.

Ao mesmo tempo, a fragilidade! Todos os vimos. Aqueles que só queriam namorar, os que precisavam gritar, os ordeiros, os deixa-disso, comandantes, pacifistas, ladrões, pilantras e sacanas. Os justos sempre se espantam com malandros otários. Mas eles assumiram, andariam lado a lado. Agora dá para ver melhor que essa mesma fusão incauta, que não fixa nada, é ao mesmo tempo a principal fonte de energia: é dali que descolam suas forças. É isso que é, e, por isso, todos são traídos pelas análises. Um grande paradoxo. No pueril a vitalidade é inata, e seu poder emana de sua enorme vulnerabilidade.

O que está acontecendo é indefinível, novo, mais uma destas complexidades sem paralelo. Pode-se sentir que ainda têm nos olhos a esperança e a força, e usam as duas para pressionar o futuro. Eles não foram introduzidos à tolerância como forma de entendimento. Por isso, surpreende vê-los andando calmamente, sem nenhum destino alvo, como se a rua fosse parte de uma rota indistinta. Sabem o que os espera? Não importa. Vão em frente, e não tem medo nem inveja da maturidade. Pelo contrário, fazem questão de ignorá-la. Por isso, revoluções só devem ser iniciadas por gente abaixo dos vinte. E onde ficamos nós? Nós somos os velhos. Aqueles que por sua vez também desaprenderam a arte da conversação. Ficamos duros, insensíveis e mentirosos. Hábeis na propaganda, safos na enrolação e no jogo de protelação. Os jovens não saberiam como nos contestar. Por isso — e eles sabem disso — não somos mesmo confiáveis.

Precisamos assumir coletivamente: muito de tudo isso veio desta mudez, um silêncio que durava duas ou mais gerações. A solução nunca foi censura, mas mais expressão. A saída nunca foi a intolerância e é vital que a resistência não seja violenta. Não fomos convidados e ainda estamos separados do mar de vozes, onde a península é apenas um esboço.

Não é por isso que os amamos menos.


Nota do Editor: Paulo Rosenbaum é médico e escritor. Mestre e PhD em ciências, é pós-doutor em medicina preventiva (USP). É autor de "A Verdade Lançada ao Solo" (editora Record). Tem uma coluna semanal em "Coisas de Política", do Jornal do Brasil.

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