Pode o presidente da Câmara passear de jatinho da FAB com a família, como quem debocha da voz das ruas? Em nome de que Henrique Alves não é imediatamente derrubado de seu cargo, ao qual não merece, tal como Renan Calheiros (também passeando em jatos da FAB), Feliciano e Blairo Maggi? Para compreender o Brasil em ebulição de hoje, além da obra do Castells sobre a sociedade em rede (os novos modos de interagir e de se expressar dos jovens) é interessante comparar esses anseios com as estratégias da governabilidade descritas pelo cientista social André Singer em seu livro sobre o lulismo. É como se fosse o confronto entre duas gerações, a dos anos 80 e a de três décadas depois, dos anos 10, com um paradoxo: muitos dos jovens dos anos 80 que ajudaram a eleger o governo de hoje, agora estão do outro lado, exigindo mudanças, correções de rumo, avanços prometidos que não vieram. A “governabilidade” está em xeque, como estratégia. Singer é o melhor cientista político para analisar criticamente o governo, do qual ele próprio já fez parte, inclusive como porta-voz de Lula. Uma expressão do Singer para descrever o fenômeno do lulismo é a “segunda alma” do PT, a dos acordos conservadores, do reformismo lento com a ideia de manter a estabilidade em nome de um projeto político de longa duração. A “primeira alma” foi sendo deixada gradativamente para trás, a dos ideais mais transformadores, da participação social em grande escala que sacudiu o país nos anos 80 até culminar com a ascensão de Lula à presidência há dez anos atrás. Pois a “primeira alma” petista, aquela que cativou o país há três décadas pregando a ética, a transparência e a participação popular nas decisões, está tendo seu “remake” no movimento das ruas que, hoje, questiona o próprio partido e seus rumos. Lembro que em 2010 o meu filho, então com 15 anos, começando a se interessar pela política, me perguntou com muita estranheza: “O PT é de esquerda?”. Respondi que “era, nos anos 80 a gente votava em pré-convenção para escolher os candidatos”. Meus amigos daquela geração estão confusos, com medo da onda anti-petista que possa levar a um retrocesso, tal como o neoliberalismo, as privatizações, o abandono dos programas sociais do governo. Não vejo clima para isso, sinceramente, correndo o risco de parecer ingênuo. Usando a expressão do André Singer, o que vejo nas ruas é a “primeira alma” dos anos 80, agora sem partido, sem sindicato, cética dos acordos da “governabilidade” entre instituições políticas que envelheceram nas suas acomodações gradativas desde que passaram a ocupar cargos públicos. A “primeira alma” é a que preserva acima de tudo os valores que levaram a algumas mudanças no país, que no entanto cessou de evoluir no rumo desejado, no trato da coisa pública. É aquela que não se converte na “segunda” que é a da governabilidade – cujo pior sintoma, o mais detestado, é o de que cada partido (com raras exceções) tem “um pedaço do Estado pra chamar de seu”. Renan Calheiros na presidência do Senado e Henrique Alves na Câmara, Feliciano na presidência da Comissão dos Direitos Humanos e Blairo Maggi na da do Meio Ambiente, até quando? Nessas horas, dane-se a governabilidade, é o que as vozes das ruas estão dizendo. Que venha a “primeira alma” das mudanças, dos jovens de agora que resgatam o que os de há três décadas deixaram para trás. Nota do Editor: Montserrat Martins, colunista do Portal EcoDebate, é psiquiatra. Fonte: Portal EcoDebate (www.ecodebate.com.br)
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