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Crônicas
10/03/2005 - 08h02
Ao som da música francesa
Chico Guil - Agência Carta Maior
 

A minha vida acontecia ao som de música francesa. Era isso que eu deveria ter dito quando você perguntou por que eu estava abandonando a medicina para fazer belas artes.

No vento daquela tarde, o frescor da cerveja na mesinha do Café, a sensação profunda de abandono nos seus olhos, amigo, que ainda hoje sinto ter deixado aos corvos do laboratório de anatomia.

- Vai mesmo fazer belas artes? Tranca a matrícula, ao menos?

- Não - respondi. - Não quero deixar essa porta aberta.

Nos anos seguintes, acossado por dificuldades financeiras, perguntei-me muitas vezes se não deveria ter terminado a medicina. Ganharia o pão no consultório, depois iria ao atelier brincar com tinta e pincel. Mas não eram as artes, não eram escolas, nem estilos. Era apenas a dor, que dói, dói, feito um rio infindável, como num canto em que se perde a voz infinita, eu sentia a dor do mundo, sentia nos músculos, nos ossos, e parecia tão ansiosa para se traduzir e libertar!

Se eu houvesse apresentado tamanho disparate, você se sentiria seduzido? Você abandonaria o "melhor curso do mundo" para buscar alívio às suas dores? Quem seria o louco que gostaria de falar em dor no século do prazer? Você deixaria o futuro certo para buscar no piano os sons feito sinfonias que embalavam seus sonhos, que tantas vezes você tentou me explicar, mas que somente em música poderia ter dito?

Teríamos anos, décadas e a eternidade pela frente, nessa tradução, mas a dor é sempre urgente, os inocentes caem todos os dias, os enganos se refazem todas as horas, e a beleza fenece quando não há cuidado. A beleza extrema que se enovelava diante dos meus olhos, a explosão das cores nas telas impressionistas, as maravilhas de Dali, os universos impossíveis de Escher... Eu não poderia continuar cortando a pele dos cadáveres, raspando a banha, separando os músculos, receitando frascos de veneno enquanto minha alma adoecia por envenenamento de música francesa.

Certa ocasião você me disse que dez anos são suficientes para transformar uma vida. Descobrimos, nesse tempo, maravilhas e horrores inimagináveis. O olhar meigo e puro dos filhos, mas também a guerra viva, a morte planejada, a covardia global perante o extermínio de inocentes. Quem poderia adivinhar, há dez ou quinze anos, que o Diabo existe e mora na América?!

Encontro seus artigos na Internet (essa rede nervosa que controla o coração do mundo). Descobriu a relação entre os remédios para osteoporose e o desencadeamento do Mal de Hipócrates. Simpósios no Canadá, conferências na Alemanha, lançamento de livros, congressos na Austrália. Você é um tremendo sucesso, desses que citam as fontes, mostram o canudo, diagramam o texto, fazem as notas de rodapé, pintam a máscara, rodam a baiana, seguem na crista da onda e são chamados de "ecléticos". Mas no fundo, bem no fundo do seu coração selvagem, você sabe que foi domado.

Não sei por que, sinto saudades, e penso que a coisa mais certa está lá atrás, há dez ou quinze anos, quando você vinha orgulhosamente me contar que havia surrupiado das lojas uma porção de CDs e livros de partituras.

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