Um dia vamos acordar desconhecendo o sentido de tudo, como se a humanidade inteira estivesse mergulhada em Alzheimer. Não estou me referindo ao sentido da vida, de onde viemos, para onde vamos, essas dúvidas existenciais e profundas. Refiro-me ao sentido mais banal das coisas. Você liga a TV e vê um pastor, que foi candidato a deputado estadual, ameaçando com a treva eterna quem não contribuir para a obra de Jesus. Jesus é o nome do arquiteto que planejou a cobertura com piscina, sauna e churrasqueira do santo homem, no Morumbi ou no Leblon. Aí você liga o rádio, ouve o ex-governador recitando versículos da bíblia e jura que o sumo campista está de olho na lacuna que em breve se abrirá no Vaticano. Quem sabe ele tem chance, pois aqueles cardeais mais parecem o colégio eleitoral da Federação de Futebol do Rio de Janeiro ou a bancada nordestina do PMDB. Continue acordado e mude de canal que você vai ver, a cada zapeada na tv aberta, um programa mais imbecil do que o outro, e todos com formatos de um jornalismo me-engana-que-eu-gosto. Num deles, o apresentador Nelson Rubens assume que aumenta, mas não inventa. Em outro, um costureiro de vestidos de noivas com a cabeleira mais tingida do que as asas da graúna dá notas para as roupas que estão vestindo as pessoas que passeiam pela Avenida Paulista, devidamente abordadas por um "repórter" que atende pelo nome de Feliz. Cansado de tanta mistura - jornalismo com fofoca, política com religião -, você desliga a máquina de fazer doidos (como a ela se referiu o cronista Sergio Porto, na pele de Stanislau Ponte Preta) e pega o jornal que estava ali desde a manhã e você nem abriu. A primeira página lá no alto anuncia que alguém seqüestrou um bebê e descobre que é a criminosa é a Renata Sorrah, que faz o papel de vilã numa novela. Outras notícias bem menos importantes - tragédias verdadeiras, manobras rasteiras da política, casos de corrupção - ocupam o espaço menos nobre da capa do matutino. Larga tv, larga jornal e vai para o computador. Entra no UOL e dá de cara com a chamada da coluna Fuxico, que fala num tal de Dado Dolabela e em outro "ator" global. Abre o link e encontra meia dúzia de fotos. Numa delas, a legenda diz "Dado chega à praia". Em outra, "Ator Fulano de tal, ao lado de Dado, toma água de coco". Na terceira, "Dado vai embora da praia". Dado Dolabela é "celebridade". E tem gente que acredita que isso é jornalismo. O departamento comercial do jornal, o da tv e o do site batem palmas porque a mistura está dando ibope. O povo quer circo, vamos armar a lona. Os coleguinhas empregados em Contigo e outras revistas do gênero ficam furiosos se alguém ousa dizer que aquilo não é papel de jornalista. Ganhem seu dindim, vivam na base da enganação, mas não queiram tentar nos convencer de que preto é branco ou que azul é vermelho. E tome Gugu, e tome Faustão, e tome Datena! Chico Buarque de Holanda e Ivan Lins, dois monstros da música popular brasileira, se tornaram parceiros pela primeira vez na vida e isso deverá render um belo CD, mas o que a imprensa divulga é o beijo dado pelo autor de Construção numa bela morena que lhe deu mole na praia. A cultura do paparazzo impera. E quando um deles é arrebentado a socos, claro que devemos nos solidarizar com a vítima da agressão, mas não venham nos dizer que ele estava exercendo a profissão que abraçamos e da qual nos orgulhamos. O jornalismo morreu ou não estamos sugerindo a vida real nas reuniões de pauta? Quem sabe isso resolveria o problema. Quando surgem boas matérias, em conseqüência de boas pautas, a turma que gruda cedo nas bancas de jornal não fica procurando fotos da vilã Nazaré. O povo diz não aos impostores travestidos de jornalistas, diz não à imposição do lixo cultural. No meio musical acontece o mesmo. Se o povo adora Zé Pagodinho, as gravadoras deviam abrir espaço, divulgar e ganhar muito dinheiro com a produção de outros gênios da nossa música, muitos deles encontrados nos fins de noite de casas noturnas da Lapa, Niterói ou Vila Madalena praticamente pedindo uma chance para mostrar trabalhos inteligentes e de bom gosto. Mas as gravadoras preferem impor Alexandre Pires, Katinguelê, Os Morenos, Belo e outras porcarias. O resultado de tanta imposição, da mentira contada como verdade até a exaustão, é que o povo é dobrado e passa a acreditar em tudo aquilo. O Rio de Janeiro, que tinha verdadeiro pavor às duplas sertanejas de araque, hoje vibra com Chitãozinho e Xororó, Leonardo, João Paulo e outros plantadores de tomates do Cerrado e do interior paulista. No Brasil, o povo é acusado de míope porque é bombardeado por porcarias, mas quem tem NET sabe que o mal não existe só aqui. A tv italiana e a tv portuguesa são intragáveis. A Oprah é uma Ana Maria Braga melhorada. O David Letterman é engraçado, mas não tem nada de jornalístico. Seu mérito foi ter inventado o formato de talk show que o Jô copia descaradamente, mas com a aura de programa "jornalístico". Haja estômago! Nota do Editor: José Sergio Rocha tem trinta anos de imprensa com passagens pelo Globo, Jornal do Brasil, Diário de Notícias, EFE, Latin-Reuters, O País, Petrobras e Petros. Foi supervisor de texto do Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro, do CPDOC (FGV). Escritor, autor da biografia "Roberto Silveira, a Pedra e o Fogo" (Casa Jorge Editorial, 2003) e de "Petros, 30 anos de história" (Mauad, 2002), além de dezenas de trabalhos como ghost writer.
|