Quando era criança, um dia caí, choquei meu joelho direito contra uma ponta de ferro carcomido pelo tempo e ganhei um grande corte; ficou a cicatriz - até hoje, no mesmo lugar, na mesma perna, no mesmo joelho. Lembra-me sempre de que um dia caí, quando era criança, e machuquei meu joelho direito, que sangrou muito naquele dia ensolarado na escola; ficou a marca - até hoje, no mesmo lugar, na mesma perna, no mesmo joelho, mas sem a dor daquele dia da minha infância. Acumulei, com os anos, em quantidade que não posso precisar, muitas outras cicatrizes. São marcas que carrego na face, na testa, no supercílio, no nariz, nas costas, nos braços, nas mãos. Muitas provocadas por mim; outras, não. E assim que se tornaram cicatrizes deixaram de doer, apaziguadas para sempre. É preciso dizer também, amigo leitor, querida leitora, para não faltar com a minha sinceridade, que dava um certo prazer manter minhas feridas abertas - mais dramaticamente, bem ao meu feitio, deveria chamá-las de chagas -, prolongando a dor, ou mesmo ampliando-a com a efervescência da água oxigenada diligente e repetidamente posta sobre elas. Para o menino sentado no chão do banheiro, era bom o glub-glub-glub - um arrepio passeando no corpo - que nascia da mistura da água oxigenada com a carne crua, exposta; minha modesta sessão de autotortura. Deve vir daí esse meu certo apego à dor. Outras cicatrizes, contudo, há, que não se vêem a olho nu - o requebro repentino do corpo, a turvação sutil dos olhos são indícios da sua existência -, que continuam em estado de acervo. Prontas para uma mostra retrospectiva na minha cinemateca particular. São cicatrizes que têm o poder de transformar-se num átimo em novas feridas, doloridas como da primeira vez, em algumas situações muito singulares, que atualizam quedas antigas, surras antigas, perdas antigas, pais e amores antigos. As cicatrizes que regressam à vida retornam, sinto, com latência talvez menor, tangidas pelo instinto de preservação. Entanto impedem, como farol vermelho. Atrapalham, como zunido de pernilongo em orelha noturna. Entristecem, desesperam como o fim de todo amor. As marcas reunidas pela vida, alfaias de duro material, quem sabe pedra, quem sabe diamante, servirão para algo? Numa cartografia pessoal, são, pelo menos, indicativos de acidentes geográficos. Sinais que indicam perigos - promontórios, arrecifes, abrolhos -, convite a uma certa precaução, a uma revisão estratégica de rota. Agora a bombordo, agora a estibordo. São, assim, uma rede de proteção contra a dor. Mas evitar toda dor será viver? Será melhor baixar segura âncora a enfunar velas por formosa sereia, por novos mares? As marcas que cada um traz em si narram uma viagem. Uma viagem por lugares ermos, por lugares lúgubres, por lugares ora gélidos, ora causticantes, repletos de seres que aterrorizam, por mais familiares que sejam. Nossos fantasmas são bem conhecidos. Entretanto é viagem, ainda que haja naufrágio. Que só assim se deu porque um marinheiro se lançou ao mar, em busca de aventura; que se lançou à vida, intrépido, à procura de amor, de compreensão, justiça, glória. As cicatrizes que ora vejo, ao espelho, em minha face, são da viagem que faço há anos, por sonho, amor, compaixão, pelas mulheres que amei e pela mulher que amo, por meus pais, por meus irmãos, por minhas convicções. São memória impressa na carne, registro de uma ação ou reação. Talvez tenham tirado um pouco do meu brilho - meu nariz ficou um tanto torto e triste, depois daquela noite -, mas significam o que sou, o que me tornei. Marcas que não quero que nenhuma plástica corrija, que me lembram da forma como atravessei a vida e a vida me atravessou. Já li não lembro onde que uma obra-prima se revela como tal por suas imperfeições. A descoberta de suas falhas, de seus limites permite que se aprecie toda a sua beleza, como que a amplia. As marcas de um ser humano revelam sua imperfeição; logo, sua qualidade singular, a obra-prima que é. Cada ser humano é também belo por sua dor, que se descobre a partir de uma cicatriz. E assim entende-se o homem, sua atitude, sua dificuldade, e também o brilho com que ele alumia tudo por onde passa.
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