A polêmica sobre as biografias, um dos temas mais presentes na mídia, é uma discussão tensa e, por isso, necessária. A Constituição e o Código Civil engendram as contradições, numa dialética de direitos versus direitos: os de ser informado e à liberdade de expressão ante os da privacidade e da honra. Não cabem, aqui, considerações jurídicas, mas se pode tratar de elementos de caráter sociológico e, por isso, sociais. Sou leitor de biografias, como as dos últimos presidentes: Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Parece-me que foram autorizadas e, por isso, muitos poderiam dizer que foram “café com leite” e até laudatórias. Tal fato dá-se, inclusive, porque muitos escritores temem as consequências legais e sanções financeiras que podem sofrer. No limite, a discussão é, sociologicamente, como relacionar a biografia e a História, a biografia e a sociedade. Os que foram, são e serão biografados devem, geralmente, ter alguma influência na sociedade. É possível negar que a obra de Chico Buarque seja importante para entender o Brasil? Podem ser desprezados os feitos de Fernando Henrique e Lula? A história econômica não ganha sentido com as trajetórias da vida de Francisco Matarazzo e Barão de Mauá? A genialidade de Garrincha? A análise biográfica é importante recurso de interpretação para as Ciências Sociais. Nesta seara, não só os notórios, mas também o “homem simples” podem fornecer pistas para desvendar o conteúdo da vida cotidiana e das estruturas sociais. Florestan Fernandes e José de Souza Martins – eminentes cientistas sociais – dedicaram parte de seus esforços analíticos ao homem comum. Este, contudo, não merece atenção da mídia. As figuras públicas é que atraem o interesse. Pergunta-se: elas têm direito à privacidade? Sim, têm, mas, ao serem indivíduos “sociologicamente distintos”, tornam-se foco do coletivo. Nesta dialética entre dois direitos assegurados por lei, fico em primeiro lugar com a total liberdade de expressão! No caso de um biografado ou de seus familiares que se sintam injustiçados, caluniados ou ofendidos, que se utilizem dos recursos legais para corrigir tal ato. O mundo jurídico tem à sua disposição ampla gama de ferramentas para isso. Porém, pedir autorização para escrever sobre uma pessoa ou, ainda, ter de dividir ganhos de direitos autorais é um disparate. Censurar um livro a priori é retomar elementos medievais, quase um Index Librorum Prohibitorum – a lista de livros proibidos pela Igreja Católica entre 1559 e 1966. Em nossa Constituição, no Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais – temos os seguintes dizeres, no Art. 5º: “É assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além de indenização por dano material, moral ou à imagem”; e “IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Não é lógico que, antes do direito à livre expressão, esteja resguardado o de resposta e indenização por dano material, moral ou à imagem? Gerou indignação que artistas da estirpe de Chico Buarque e Caetano Veloso, integrantes do grupo “Procure Saber”, com suas histórias de perseguidos políticos e censurados, estejam no epicentro do imbróglio. Não foram poucas as vezes que Chico defendeu o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Nesta questão entre o direito à propriedade privada e o direito à terra (que são antagônicos, como no caso da liberdade de expressão e a prerrogativa da privacidade), ele não teve dúvidas: ficou do lado dos trabalhadores rurais. Parece-me que entre o interesse individual – do proprietário – e o interesse coletivo – dos trabalhadores sem terra –, ele tenha escolhido o lado certo. Por isso, o espanto de muitos ante a defesa de Chico da necessidade de autorização prévia para biografias. Disse algo assim: “Pensei que Roberto Carlos tivesse direito à privacidade.” Depois, afirmou que não havia dado entrevista ao biógrafo de Roberto Carlos. De Paris, deu a seguinte entrevista: “Posso até não estar bem informado sobre as leis e posso ter me precipitado [...] repito: se a lei está errada, se eu estou errado, tudo bem, perdi”. Eis, aqui, o Chico Buarque com que a maioria acostumou-se: crítico, inclusive de si mesmo. Todos têm direito à privacidade e à honra. Quando alguma obra cause dano, por meio de calúnia, injúria ou difamação, que o autor seja processado e obrigado a indenizar a personalidade aviltada. Contudo, jamais censurar de antemão. Que o interesse coletivo prevaleça sobre os particulares. Que tenhamos o direito de conhecer nossa História e seus personagens, sejam os simples ou notórios. Nota do Editor: Rodrigo Augusto Prando é bacharelado e licenciado em Ciências Sociais, mestre e doutor em Sociologia pela Unesp, FCL, Araraquara. Professor e pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie, do Centro de Ciências Sociais e Aplicadas.
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