Bons programas de TV, principalmente nos canais de assinatura, tratam a questão cultural com o respeito e a importância merecidos. Neste fim de semana, a TV Câmara reprisou um debate entre os teatrólogos Augusto Boal e Alcione Araújo, e é nestas horas - quando não há "celebridades" por perto - que a gente vai dormir com a sensação de que não é preciso fazer mágicas para elevar o padrão das nossas emissoras de TV e, até mesmo, melhorar o país em que nascemos e vivemos. Os dois pensadores e realizadores do teatro chamaram a atenção para as distorções que a primazia do econômico provoca no mundo das artes e dos espetáculos. Enquanto o país, seja sob tucanos, petistas, ditadores ou oportunistas, enxergar o desempenho da economia como único quesito importante do nosso projeto de estado, não importa que o ministro seja artista, picareta ou tecnocrata, pois continuaremos marinados na salmoura da estupidez. Cultura será sempre vista como uma benesse para os amigos e filhos de gente importante que estão com um projetinho para se dar bem na vida. Cultura será mais um itenzinho pegando carona na agenda não prioritária dos governos. Boal foi feliz ao comparar nossos pesadelos com a dívida externa aos tempos da escravidão. Escravos de uma dívida eterna, somos tal e qual os negros das senzalas do Vale do Paraíba ou os seringueiros atuais que mourejam a vida inteira em um latifúndio de onde não podem sair porque a conta do armazém sempre será maior do que o salário do fim do mês. Escravos do superávit primário, exageradamente preocupados com cada balancete mensal, somos todos nós, brasileiros ricos, pobres ou remediados (categoria onde podemos incluir 95 a 99% dos coleguinhas), uns escravos eternos que consomem cada vez menos literatura, teatro, cinema, artes plásticas. Estamos hoje à mercê da televisão, que é barata e faz parte da mobília. Alcione Araújo focou bastante a dissociação entre cultura e educação. Os governos, todos os que tivemos e provavelmente muitos dos que virão depois, parecem considerar a cultura um brinquedo de gente rica. Neste e em outros países que tratam a questão cultural com desprezo, médicos se formam sem ter lido um só clássico da literatura, engenheiros saem da faculdade sem ter visto uma obra de arte. Não seria difícil incluir a cultura nos currículos escolares. Lembro que em toda a minha vida escolar fiz uma ou duas visitas ao Museu Nacional e, empurrado pela escola, uma vez a uma bienal. Hoje em dia vestem os garotos como índios no dia consagrado aos primeiros habitantes de Pindorama. Claro que em escolas modernas, de gente rica, o leque é mais variado. O que tudo isso aí tem a ver com jornalismo? Existem bons projetos culturais em jornais como "O Globo", mas isso é pouco. Quem sabe se, desde a escola pública, o estímulo maior às visitas a museus e observatórios, idas semanais a teatros, projetos desenvolvendo habilidades na dança e no aprendizado de instrumentos musicais (do pandeiro ao cravo), enfim, agendas extensas de provocação cultural, desde a mais tenra idade, quem sabe isso tudo reunido nos ajudaria a formar platéias inteligentes e mais cultas do que as que temos hoje? Com certeza, aumentará o volume e qualidade de leitores e cairá a tiragem das publicações sensacionalistas. Vamos perder empregos com isso? Nada disso. O mercado vai crescer onde deve crescer. Teremos menos modelos e manequins, apresentadores de televisão, rainhas de bateria, musas do verão, mas em compensação podemos chegar perto do Prêmio Nobel. E os paparazzi vão se mudar da praia do Leblon para a porta das livrarias. Quem sabe, até lá, teremos uma dívida menor com nossa própria formação? O superávit primário que se dane! Nota do Editor: José Sergio Rocha é jornalista e escritor.
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