Entre os muitos artigos e reportagens escritos a propósito das questões levantadas em torno da Lei de Biossegurança, uma carta reproduzida no "Forum dos Leitores" do "O Estado de São Paulo" de 04 de março p.p., sob o título acima, impressionou-me pela simplicidade e objetividade. A missivista, Marisa Moreira Salles, obviamente pessoa com formação científica, abordou a questão do uso de células-tronco, comentando artigo do escritor italiano Giovanni Sartori intitulado "A vida humana segundo a razão", também publicado no mesmo jornal em 02 de março, p.p. "A exemplo do Brasil, diz Sartori, a Itália discute, também, o uso de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas. E, como aqui, os que tomam posição contrária a tal utilização costumam recorrer a um argumento frágil: o de que a vida humana começa no momento da fecundação, logo, os direitos do embrião seriam os mesmos das ’pessoas nascidas’. Ora, diz ele, se até no entender do Papa João Paulo II a ciência se submete às regras da lógica, é completamente ilógico sustentar que o mero resultado da união entre óvulo e espermatozóide já represente um ser humano, pois isso equivaleria a dizer que um ovo é uma galinha. Evidentemente, não é - da mesma forma que células-tronco embrionárias não são pessoas, mesmo porque as que os cientistas poderão usar em suas pesquisas não têm nenhum vestígio de sistema nervoso, nem de nenhum dos outros sistemas que nos fazem humanos. Se todos, inclusive a Igreja, aceitam que um ser humano morre no momento em que seu sistema nervoso pára de funcionar, porque não fazer o início da vida coincidir com o momento em que surgem as primeiras ligações nervosas? Além disto, há uma inacreditável distorção do conteúdo da Lei de Biossegurança que não autoriza procedimento que se compare ao aborto, nada que se assemelhe a ’matar uma vida para salvar outra’. Assim, as pesquisas só poderão ser feitas com células-tronco embrionárias incapazes de gerar um novo ser humano em clínicas de fertilização - seja por algum tipo de ’ineficiência’, seja porque se encontrem congeladas há mais de três anos. O que se quer é que as células-tronco embrionárias que seriam jogadas no lixo contribuam para a possibilidade de cura de portadores de males que, sem isso, verão - eles, sim - sua vida escorrer pelo ralo. Proibir isso seria algo como deixar um paciente morrer só para não transplantar para o seu corpo o órgão de alguém que tenha morrido." Estes comentários, bastante lógicos e factuais são, ainda, oportunos mesmo após a contundente aprovação da Lei de Biossegurança, cerca de 5 votos a favor de cada contra, uma vez que o radicalismo religioso de alguns continua a esbravejar contra essa decisão "do primado da luz da ciência sobre as trevas do dogma." Como escreveu João Mellão em recente artigo comentando nosso Legislativo nacional, a despeito de todos os defeitos que possam ser a ele atribuídos, não se recorda de nenhuma decisão de nosso Congresso, que não tenha sido boa para o País. Daí por que "a democracia é o pior dos regimes, à exceção de todos os demais que já apareceram por aí" (Winston Churchill). Ela permite o milagre da grandeza do todo ser maior que a soma das partes. O que devemos esperar é que o século XXI traga, também, mais democracia para dentro da Igreja e mais luz a todos os nichos religiosos retrógrados, arejando-os em seus dogmas, doutrinas e práticas, provocando um realinhamento maior e mais profundo da fé com a ciência. É impossível separar o homem da fé, mormente no que tange os fenômenos metafísicos. A ciência moderna, todavia, merece respeito. É importante observar que neste binômio - fé e ciência - cuja resultante produz a estabilidade intelectual, espiritual, emocional, enfim geral do homem, diante do universo, o fator ciência vem pesando cada vez mais, paulatinamente com o decréscimo da utilidade da fé, pois, é inquestionável que o homem moderno necessita exercer muito menos fé do que seus antepassados. Este processo de substituição da fé pelo conhecimento científico, sempre esteve em marcha ao longo da história humana. Se fé "é a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não vêem", segundo a clássica definição do apóstolo Paulo na Epístola aos Hebreus 11:1, podemos com toda a segurança dizer que hoje aguardamos os eventos da vida e enxergamos as realidades que nos cercam com muito menos utilização da fé e muito mais da ciência, do que o apóstolo em seus dias. Conseqüentemente, não há por que dar à fé o que cabe à razão, ao conhecimento factual, à ciência. Nem há, por que perder a fé no transcendental, pois, tão longe quanto possa chegar a ciência, o universo continuará a se mostrar infinito e o Deus cristão continuará a ser oni, ou "omnis" (lat.) "tudo ou todo onisciente, onipotente". Tenhamos, portanto, sempre presente que "a mente que se abre a uma nova idéia, jamais voltará ao seu tamanho original" (Albert Einstein). Nesta grandeza acrescida está o valor da ciência e a beleza da fé, se consentânea com a realidade do mundo moderno.
Nota do Editor: Ernesto F. Cardoso Jr. é MBA - Mestre em Administração de Empresas.
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