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Crônicas
17/11/2013 - 15h04
Cinco quilômetros e oitocentos metros
Marco Albertim
 

O sol não se pusera, e se o fizesse, a fome seria sentida com os braços sem forças, feito o astro sumindo na tarde dormente. Eram duas da tarde, e a fome se deu com estalidos nos dentes, tinindo como o lume do sol àquela hora.

A decrepitude cúmplice entre o galpão de triagem e o canal do Arruda, é tão explícita quanto o bodum do lixo empilhado no galpão, e o fedor vaporoso da lama nas margens do canal. Uma dezena de carroças de madeira estaciona de um lado e de outro da avenida professor José dos Anjos; as carroças, com sarrafos finos nos lados, na frente e atrás de cada estrado, semelham a cercas de chiqueiro onde escassos animais mínguam à espreita da morte iminente. Os homens que ali trabalham, misturam o suor do rosto com a imprecisão de cores, de restos ainda úmidos colhidos nas lixeiras de condomínios. Não são guabirus, inda que não estranhem a putrefação que zumbe sob o calor da hora. Não sentem o azedume próprio de cada resíduo, visto que os narizes, à força de tanto sorvo, emparedaram-se feito crostas.

A última carroça estacionada sob o fícus de galhos secos na margem superior do canal, esperava a vez de ser acolhida no interior do galpão. Seu dono, um velho de carnes ainda rijas, sentara-se no meio-fio entre o asfalto e o chão escuro da grama rala. Não fez esforço para fazer dos joelhos, escoras para os braços; o tronco, no esforço diário de empurrar a carroça segurando-a nos dois braços de madeira, vergara, tornara-se côncavo. Podia vestir a camisa, vez que à sombra do fícus o vento soprava generoso feito uma promessa de saúde, inda que difusa. Deixou-a pendurada num dos braços da carroça, cuja utilidade tem desígnios de cabide. De seu lado, o filho de doze anos imitou os trejeitos do pai. Os dois usavam alpercatas de couro, meio estropiadas nos saltos e nos bicos, mas com tiras de coro no dorso dos pés, duras e sem indício de rangidos.

Os dois comeram os restos de comida, deixados por fregueses num restaurante ordinário do Pátio de Santa Cruz. Recolheram o lixo plástico, de papel ou papelão, do restaurante; em troca, o dono se livrara da provável inhaca de alimento azedo depois de usado, cedendo-lhes petiscos diversos em quentinhas já usadas. O velho, crendo-se mais afortunado que outros trapeiros, comera sem cálculos na desordem dos dentes. O filho não fazia esforço para empurrar a carroça, recolhia o lixo nas calçadas, com o olho tão apurado quanto o do velho, na escolha de um resíduo cujo peso rende mais na balança do galpão de triagem. Na mastigação de um resíduo remanescente de carne no osso de uma bisteca, entrevira a chance de disfarçar a fome, espreitando sem temor o sonho de todas as noites - a crosta gordurosa de uma canja de galinha num dos pratos de plástico que a mãe mantém na bolsa de pano suspensa na parede de madeira do barraco.

Às duas e meia da tarde, a primeira carroça do turno deu entrada no galpão. Sem sair do lugar, o velho observa com os olhos quase fechados, a quantidade e a diversidade do lixo que será vendido. As garrafas plásticas, de Coca-Cola, são muitas. Os papelões de embalagem são largos, compridos, também servem para forrar o chão na ausência de cama; mas no peso, depois de convertidos em dinheiro, podem render pães inteiros, não os farelos encontrados todos os dias junto a caroços de feijão refugados. Há ferros, por certo tirados de uma cama patente enfim refugada. O peso é maior... Quarenta centavos o quilo! Depois da triagem, uma mulher, a trapeira que recolhera o lixo, põe entre o sutiã e o peito sem mamas, a paga. Também tem filho; no caso, uma filha ainda adolescendo, prestes a dar-se na promiscuidade mal escondida do vestido de chita há muito sem a cor primeira.

A mãe sorri para o velho. Do lado de fora do galpão, o sol, em seu rosto sujo e suado, tinge-a de um cobre luzidio. A troca de sorrisos lhes basta para o cumprimento, visto que não se tratam por compadres; não têm nada para dar um ao outro, por isso se tratam por compadres. As duas seguem na avenida na margem do canal. Há sombra sob a arquibancada do estádio do Santa Cruz; não lhes apetece. Há uma viatura da PM indiferente aos cinco mil e oitocentos metros que terão que andar até o Vasco da Gama, onde moram.

No fim da tarde, com o sol se pondo, o ar está tão dormente quanto os braços do velho e do filho. Ainda sem camisa, os dois empurram a carroça para o outro lado, rumo ao galpão de triagem. Nos fundos, o depósito acumula lixo numa altura de vinte metros, onde o teto de zinco exibe círculos encorpados de fungos. Quando há muito lixo, o velho teme que sua carga seja rejeitada, ou só seja aceita depois que o lixo do depósito seja evacuado pelos atravessadores, para a revenda nas fábricas. A dona do galpão não tem aparência de trapeira; do lucro que tira dos trapos, consegue vestir-se com uma cambraia de algodão florada. Tem pouco mais de trinta anos, e não consente a presença dos filhos no amontoado do lixo.

O velho, ele mesmo separa os resíduos conforme a consistência dos dejetos. Não conseguira ferros, só garrafas plásticas e papelões. Esvazia a carroça e amealha cinco reais no bolso da algibeira. Saem. Ao fim dos cinco mil e oitocentos metros, no Vasco da Gama, o filho sugere que compre pão na padaria.

- Pão dormido, de ontem, tá mais curtido e é mais barato - assente o velho.


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

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