Consumada a reintegração de posse do prédio da reitoria, veio a constatação dos danos deploráveis ao patrimônio da USP: móveis depredados, objetos furtados, pichações grotescas, livros injuriados, uma terra arrasada. A lembrar a história dos trogloditas elementares. Só que estes eram homens que nem tinham ascendido ao comércio das palavras. Os invasores agiram como tribos da antiguidade, desprovidas das mais básicas condições de inteligência que conhecemos como atributos dos humanos. Pichar paredes de uma instituição como a USP com palavras abomináveis não guarda grande diferença das manifestações selvagens dos povos primitivos. A biblioteca de Alexandria também foi incendiada, em nome de aspirações políticas justas. A humanidade perdeu um imenso acervo cultural, nele incluídas comentários de Aristóteles a todas as Constituições do mundo. Só não sucumbiu ao fogo do obscurantismo, paradoxalmente, a de sua Atenas. A caminhada do homem sobre a terra sofreu lamentável retrocesso, o que é inseparável desses pensamentos ensandecidos manifestados por uma minoria de jovens, que querem destruir pela violência gratuita um mundo por eles considerado injusto, olvidando que o mundo não é absolutamente injusto, mas portador de injustiças, que, para serem erradicadas, é preciso contar, sobretudo, precisamente com as novas gerações, porém educadas, conscientes da boa política e que trilhem o caminho da cultura e da inteligência, o qual uma instituição pública brasileira se dispõe a fornecer-lhe, sem nenhum custo e discriminações sociais. Em 1968, a Faculdade de Direito da USP (Largo de São Francisco), à qual fiquei devendo meu destino de profissional liberal, posto que não possuía as mínimas condições de pagar uma faculdade privada, foi “tomada”, no dia 23 de junho, por um grupo de alunos de “vanguarda”, que manifestavam resistência à ditadura militar e que se inseriram no movimento mundial de questionamento de todos os valores das sociedades constituídas sob o conservadorismo da imutabilidade e que gerou reformulações políticas eficazes até hoje. Seu epicentro foi na França. Jean Paul Sarte caminhava à frente das passeatas. Nada foi sucateado, salvo as concepções estereotipadas, injustas. Um ministro da extrema direita de Charles de Gaulle propôs-lhe que prendesse o filósofo. Recebeu a resposta: não se prende Voltaire. A poderosa Alemanha também foi sacudida por seus jovens, sob a liderança de Daniel Cohn Bendit, que hoje ornamenta com sua invulgar cultura o Parlamento Europeu. Como não poderia deixar de ser, os militares retomaram a Faculdade do Largo e ficaram surpreendidos com a incolumidade de suas dependências, rigorosamente observadas por quem fazia política com a cabeça e não com as mãos e pernas. Quanta diferença... Depois do golpe no golpe desfechado pelo AI5, em dezembro daquele ano, rarearam-se os heróis. A debandada rumo ao silêncio compungido foi numerosa e compreensível. É muito fácil depredar, aparecer, dar-se como valente, preencher seus vazios inconscientes, no âmbito de um Estado de Direito Democrático. E, sobretudo, de um regime em que as instituições encarregadas de fazer valer as leis demoram mais de uma quarentena para fazer efetiva sua força legítima. Compreendemos perfeitamente a angústia de jovens que são bem tratados por seus pais, dão-se aos estudos, em escolas privadas ou públicas, superam a nefanda barreira dos vestibulares, conseguem frequentar bons cursos superiores – preparatórios do desemprego. Essa ansiedade é universal, como se vê da elevada taxa de desemprego dos jovens nos países desenvolvidos. A frustração é dupla: financeira e psicológica. A maioria dos jovens preparada em Universidades não se conforma em viver sem aplicar os conhecimentos adquiridos, ainda que possa sobreviver com recursos familiares. Não é essa violência das cavernas, contudo, que irá preencher esse vazio material e existencial. A questão está no centro da imensidão política dos desafios dos governos e das sociedades contemporâneas e tem sido observada, inclusive, por órgãos da ONU. A demora nas soluções públicas quase sempre não é compreendida no ritmo veloz das frustrações dos jovens. Construir e não destruir. É muito mais fácil demolir – com raiva e ódio. Nota do Editor: Amadeu Roberto Garrido de Paula é advogado.
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