Certas lendas são compreensíveis a partir de sua utilidade ou segundo o seu grau de ingenuidade. Veja-se o Papai Noel: seu caráter lúdico é importante para o universo infantil. E também para a formação dos hábitos de consumo. Outra lenda que tem sua utilidade e se mantém não por ingenuidade, mas por malícia, é a do Livre Mercado. Trata-se de ardilosa ficção, que opera como instrumento político travestido de argumento econômico racional. Expressa interesse político-ideológico que se protege na retórica enganosa da economia, abrindo espaço para se impor politicamente. A terceirização do trabalho é filha da lógica do Livre Mercado. Apresenta-se como imperativo de gestão capaz de liberalizar os sistemas econômicos e elevar o seu desempenho. Após a primeira onda, a terceirização volta ao debate a partir do PL nº 4.330/2004, de Sandro Mabel, empresário-deputado. A novidade – apresentada pelo Livre Mercado como necessária e fator imprescindível ao incremento da competitividade econômica – é a terceirização nas atividades-fim (a razão pela qual a empresa foi constituída). Hoje, a lei permite somente a terceirização das atividades-meio, que não se confundem com a atividade principal. O discurso está ensaiado: sem terceirização – agora das atividades-fim – a economia nacional não será competitiva, o país não crescerá e estaremos fadados à posição de lanterna entre os BRICS. Hoje, um terço dos profissionais registrados trabalha sob o regime da terceirização. Se aprovada a proposta, haverá uma inversão nessas proporções. É prudente olharmos para a situação dos trabalhadores terceirizados após aquela primeira onda. A perda da qualidade do emprego é inegável: surgiu uma nação de trabalhadores com remuneração mínima (quase trinta por cento inferior à dos demais trabalhadores), obrigações máximas (sua jornada supera em mais de trinta por cento a dos seus colegas não terceirizados) e riscos idem: oitenta por cento dos acidentes de trabalho no Brasil vitimam terceirizados. Tudo isto levanta dúvidas. Uma delas: que relação há entre terceirização e o aumento do fosso social brasileiro? Num país em que o salário se presta a pagar despesas com certos bens e serviços que deveriam ser suportados pelo Orçamento Público, soa leviana esta solução que remete ao mais irresponsável laissez-faire e agrava a condição do assalariado. As peculiaridades da complexa sociedade brasileira exigem criatividade capaz de nos preservar das lendas do Livre Mercado. Nota do Editor: Caleb Salomão vive em Vitória, no Espírito Santo. Com formação jurídica, atualmente é professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Ele é autor do livro Artigos para Amar, além de ter escrito outras obras na área do direito.
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