- Alô, Ego? Aqui é o Alter. - Walter? - Não, Alter mesmo. Alter-ego. O seu, pra ser exato. - Olha, eu estou em trânsito. Posso retornar mais tarde a ligação? - Não, não pode. Seu rato filho da mãe. Pústula, desgraçado, hipócrita... tratante, desalmado, usurpador... não vai se defender, não? - Absolutamente. Desconheço a razão dessa ofensa descabida e não costumo me influenciar pela opinião dos outros. - O problema é que eu sou você. E bota problema nisso. - Nesse caso, eu exijo ser apresentado formalmente a mim pra continuar a conversa. Não é do meu temperamento me abrir com estranhos, ainda que esse estranho aparentemente me seja tão íntimo. A voz, pelo menos, é igualzinha a minha. Impressionante. - Tudo bem, então vamos marcar um encontro. Na minha mente ou na sua? - Nenhuma das duas. Território neutro. Talvez entre o hemisfério direito e o esquerdo do nosso amigo em comum, o que me diz? - Mas ali, bem na fronteira, ninguém fala coisa com coisa. Vamos ficar lá, feito dois idiotas. Só sentindo, sem articular nada. - Não mistura sentimento nessa história. Não sentimos nada um pelo outro, até porque estamos falando agora pela primeira vez. - É, mas eu sou uma criação sua. - Olha, você deve ser fruto de alguma distração minha, isso sim. Um mau passo. Não me lembro de ter criado nada tão sem graça e inconveniente. - Desculpe, mas foi o que você conseguiu arrumar. Cada um tem o alter-ego que merece. - Ok, agora sejamos práticos. Por que ligou pra mim? - Queria um pouquinho de reconhecimento e consideração. É péssimo pra auto-estima ser o outro o tempo todo. Ponha-se no meu lugar, tente entender como me sinto. Você só me aciona quando não quer ser você mesmo, em situações de escape. Eu não passo de um dublê. - Desencana, passa o mico pra frente. Cria um alter-ego pra você. O alter do alter, que tal? Só torce pra ele não te ligar no meio da tarde com conflitinho existencial, querendo discutir a relação... - Tá me chamando de fraco? Fraco foi você em me criar pra se esconder de você mesmo. Eu não pedi pra nascer. - Nossa, é mesmo? Que rebeldinho sem causa. Está querendo o quê, casa, comida, roupa lavada, carteira assinada, fundo de garantia? - Só o direito de greve, de vez em quando, já estava bom. - Pois por mim eu já te dava o auxílio-funeral, seu bosta. Morra agora, e de morte trágica. - Não me conformo... não é possível que eu, tão mais interessante, seja obra sua. Mas tudo bem. O pai do Einstein foi sem dúvida menos brilhante que ele. - Não esperneia, não. Aceite sua insignificância. Saiba que você sempre será o outro, um subproduto do original. Alguém que só existe graças a mim. E isso se eu de fato te reconhecer oficialmente, porque por enquanto eu só estou escutando você dizer quem é e presumindo que isso seja verdade. Mas quem me garante que você não é um impostor? - Esta dúvida eu tiro de você rapidinho. Sei milhares de coisas que só nós dois sabemos. Tenho como provar minha autenticidade, ou seja, o triste castigo de ser você.
Nota do Editor: Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário em Campinas (SP), beatlemaníaco empedernido e adora livros e filmes que tratem sobre viagens no tempo. É colaborador do jornal O Municipio, de São João da Boa Vista, e tem coluna em diversas revistas eletrônicas.
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