Gasto horas calculando os ângulos dos declives das pedras da praia, na esperança de descobrir uma sombra torta, pequeno vacilo nos cálculos do Criador. No meio do caminho tinha uma goiaba. Tinha uma goiaba no meio do caminho. Que dirão os tristes seres que sustentam a minha solidão, nesta árida seara de meu Deus, que por falta de um temperamento mais educado comi a goiaba que encontrei no meio do caminho?! A goiaba não tinha bicho, por excesso de agrotóxico, mas durante o sono, na conjunção com meus humores digestivos, virou uma pedra e começou a perturbar o fluxo normal do sangue nas veias e no cérebro. Nesse momento, acionou-se automaticamente o desfragmentador de disco e as imagens passaram rápidas, projetando no horizonte os acontecimentos ancestrais, a história milenar dos loucos de duas patas, suas guerras, suas roupas, seus perfumes, seus inexplicáveis orgulhos. Logo que revisei todos os acontecimentos, inclusive o suicídio de Vargas, o affair de Kennedy e Moore, o nascimento de Lao Tse e a lâmina refletindo o céu azul da tarde em Paris enquanto se projetava contra o pescoço de Luis XVI, minha mente ficou livre da humanidade e, então, pude viajar para todos os lugares do mundo, e pude conhecer em detalhes cada um dos cinco continentes. Não visitei os museus, hotéis e restaurantes. Evitei as cidades, porque as cidades estão cada vez mais iguais, com esses postos de combustível estilo americano em cada esquina, e essas lojas todas chiques onde os atendentes sempre dizem as coisas certas e nunca se embaraçam na hora de fazer o pacote. Não, não estive nas cidades, mas nos vales, nas montanhas, nos rios, movendo os cascalhos, os gravetos, as folhagens, procurando em cada vão sob as pedras uma colônia de seres, e lá estavam famílias inteiras, gerações, com seus primos, genros e netos, os besouros coloridos, os velhos e os jovens trocando experiências de uma vida sofrida, como seres aproximadamente voadores que são. Estive na escuridão das colméias, onde a distribuição do trabalho e da renda se faz homogeneamente, à exceção das rainhas, que bebem com exclusividade a geléia real, e dos zangões, que vieram ao mundo para comer o mel e a rainha. Estive no meio dos formigueiros, sentindo o olor dos feromônios durante as danças da procriação. Também vi a serpente venenosa enrodilhada em torno dos ovos, aguardando a eclosão para sair à caça em busca de alimento para os filhotes. De todas, esta imagem foi a mais impressionante, porque a peçonha dava consistência à responsabilidade materna, facilitando a coleta de alimento. (Tenho visto muitas mães distribuindo venenos, quando se trata de proteger os filhos. Chamam-nas de cobras, serpentes, quando são apenas mães).
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