Um século depois, a história não é de um drama individual de um pobre judeu, preso e torturado pela polícia da Rússia Czarista por um homicídio que não cometera, infâmia imortalizada no notório filme inglês de 1969, dirigido por John Frankenheimer. É a epopéia dos homens de Kiev, que tomam diariamente a Praça da Independência e progressivamente encurralam o governo, a ponto de os militares estarem prontos a intervir, em agravamento do conflito entre o povo e seus dirigentes. Pouco adiantaram as medidas ameaçadoras do “senhor de todas as Rússias”, Vladimir Putin, ao abastecer a Ucrânia subserviente de um aporte de 15 bilhões de dólares e inibir militarmente as manifestações, ao estacionar aviões de combate na Bielo Rússia e alocar recursos militares nas regiões de Kaliningrado e no Ártico, a pretexto de defender-se das armas defensivas, reputadas de ofensivas, da Otan, presentes na região. Os manifestantes, cultos e conscientes do que desejam, lutam por sua libertação do obscurantismo que ainda reina no leste-europeu, não obstante a queda do socialismo real e a demolição do muro de Berlim. É uma luta democrática, em que a oposição pretende a adoção dos valores ocidentais da democracia social, em contraposição a um regime opressor e dependente de uma potência estrangeira governada por ex-policiais da inteligência e envolvidos com as organizações mafiosas da região, para os quais o desgarramento da Ucrânia significará a perda do domínio sobre um vasto território fronteiriço e a debilitação de seus não-valores. O conflito ucraniano talvez parece ser o mais relevante da atualidade, posto opor novamente as tradicionais forças, “mutatis mantandis”, que compuseram o período da “guerra fria”, que imaginávamos superado. De um lado, os russos e seus títeres, mercenários, opressores, buscadores de lucros fáceis e ilícitos, de outro, as sociedades organizadas da Europa Ocidental, a ONU, a Otan e Os Estados Unidos. O confronto foi uma ferida grave e exposta na última Conferência de Segurança em Munich, em que farpas contundentes foram trocadas pelas respectivas representações. O fato é novo e imprevisto, já que o passado recente deu claros indícios de convivência pacífica entre o Ocidente e a Rússia. Em 2010, Washington e Moscou celebraram importante acordo de redução armamentista, no mesmo ano ratificado em Lisboa pela Otan e a Rússia. Em 2011 a Rússia se absteve de embaraçar, no Conselho de Segurança da ONU, a invasão da Líbia. Hoje, tudo isso parece um passado distante. As rádios moscovitas não se cansam de transmitir programações anti-americanas e anti-ocidentais e as citadas manobras militares ameaçam esquentar a frieza. A Rússia acusa o ocidente de estar interferindo nos assuntos internos da Ucrânia, ao apoiar a oposição e os movimentos populares, como se não tivesse feito desse grande país, por décadas, um feudo dependente de seus senhores. Nota do Editor: Amadeu Roberto Garrido de Paula é advogado especialista em Direito Constitucional, Civil, Tributário e Coletivo do Trabalho e fundador da Garrido de Paula Advocacia.
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