O ano de 2014 guarda, sem dúvidas, eventos recheados de singularidades no que tange aos seus simbolismos sociais: a Copa do Mundo e as eleições presidenciais. O ano que ora se inicia tem, ainda, a lembrança dos 30 anos do movimento das “Diretas Já”. O Regime Militar (1964-1985) teve, em seu bojo, não só as Forças Armadas, mas, setores civis da tecnoburocracia estatal, bem como parcela da elite econômica. Houve, por assim dizer, uma dialética entre o “milagre brasileiro” e os “anos de chumbo”: conjugou-se crescimento econômico vigoroso ao aumento da concentração de renda e da pobreza, bem como da repressão levando à tortura e desaparecimento daqueles que foram considerados subversivos. Na década de 1980, o fenômeno da estagflação (estagnação econômica somada às altas taxas de inflação) forçou o Brasil a recorrer ao FMI e, em 1984, a inflação chegou a 223%. No plano político, a Legislação Eleitoral datada de 1965, mostrou-se uma arma contra o próprio Regime, já que com a existência dos dois partidos – Arena e MDB – as votações tinham um caráter plebiscitário. Uma nova lei orgânica dos partidos, em 1979, quis por fim esse problema. A Arena tornou o PDS, o MDB o PMDB e se deu o surgimento do PT. Eleições legislativas e para governadores e prefeitos foram realizadas em 1982 – levando cerca de 48 milhões de eleitores às urnas. Novos ares – que clamavam por democracia e por eleições diretas – estão presentes na sociedade brasileira. Em 1983, numa frente única, partidos (PT, PMDB, PDT), CUT, Conclat, profissionais liberais, movimentos sociais, intelectuais, artistas e a população em geral tomam as ruas objetivando lutar pelas eleições diretas. Mesmo com a derrota, no Congresso, da Emenda Dante de Oliveira (que previa as eleições diretas para presidente), a sociedade já não era a mesma e o Regime Militar estava em seus estertores. Tancredo Neves que fora eleito, ainda indiretamente, não chegou a assumir como Presidente. Coube a José Sarney, seu vice, fazer a transição para a “Nova República”. São três décadas a separar as manifestações em prol das “Diretas Já” das “novas” manifestações que tiveram início em junho de 2013. O Brasil é, hoje, substancialmente diferente e, é por conta da existência de um regime democrático, da alternância de poder nas esferas do Legislativo e do Executivo, das liberdades de expressão, das conquistas sociais. Desde então, os brasileiros elegeram e depuseram Fernando Collor; votaram em FHC, que controlou a inflação e estabilizou a economia, elegeu-se Lula, que contribuiu para a diminuição da miséria e do aumento da classe média e foi eleita a primeira mulher para presidir o país. Destes, FHC e Lula, estavam presentes nos palanques pelas Diretas, eram jovens despontando no mundo da política. Já se vão bons anos de uso da democracia, todavia, sua qualidade deixa a desejar. Claro que nossos vícios – patrimonialismo, populismo, corrupção – ainda estão presentes em nosso cotidiano social. A ação de grupos de manifestantes, dos quais se destacam os famigerados Black Blocs, assentados numa estética e ação violentas, não são – a meu ver – a melhor opção para a melhoria da qualidade democrática. Manifestar indignação é um direito individual. Reunir-se para se manifestar, idem; contudo, usar de violência, intimidação, depredação do patrimônio público e privado, não chegam a significar avanços políticos, ao contrário podem apresentar indícios de autoritarismo e de pensamento único, cuja característica é entender o oponente – que pensa diferente – como inimigo que deve ser eliminado, seja simbólica ou fisicamente. Exigir um “padrão Fifa” para escolas, hospitais e para o transporte público é bem-vindo. Ir a uma manifestação exigindo mudanças é, apenas, uma face da moeda, a outra, mais difícil, mas imprescindível, é fazer propostas concretas, viáveis. Cobrar do poder público e se colocar aberto ao diálogo e apresentar proposta, isso, sim, é contribuir. Já em 1984, no clamor pelas Diretas, os partidos políticos não eram capazes de compreender e exprimir todos os anseios da população. Hodiernamente, vivemos numa sociedade em rede, de relações reticulares, na qual os partidos e o poder constituído precisam, mais do que nunca, se reinventar. Há, certamente, uma crise de representatividade, não basta votar e ser votado. Faz-se necessário um tipo especial de inteligência: uma inteligência política que entenda que novos valores estão presentes na sociedade, mas que o diálogo no espaço democrático ainda é a melhor aposta para avançar. Talvez os jovens que, hoje, escondem seus rostos e praticam a violência num regime democrático, tenham algo a aprender com aqueles que, ainda sob o Regime Militar, foram às ruas de “cara limpa”. Nota do Editor: Rodrigo Augusto Prando é cientista social, mestre e doutor em Sociologia pela Unesp – FCL – Araraquara. Professor e pesquisador do Centro de Ciências Sociais e Aplicadas, da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
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