Fiz minha primeira leitura filosófica aos treze de idade - o diálogo Mênon, de Platão - incentivado por um velho amigo da família. Já tinha lido ou folheado quase tudo que meu pai trazia para casa, mas eram sempre obras de ficção, especialmente as grandes feras do nosso regionalismo. Minha mãe também adorava esses autores. Largara os estudos na quarta série primária, e tentava preencher a lacuna devorando pacientemente nossa estante de livros como um cupim-narigudo. Fosse como fosse, nenhum dos dois gostava de filosofia; na verdade, tinham até uma certa prevenção contra os filósofos, e não viram com bons olhos a intrusão de um mentor na minha vida. Mas como nunca censuravam os filhos deixaram o barco correr. Quanto a mim, confesso que o diálogo platônico foi uma descoberta empolgante. Cortei um dobrado para entender o que estava lendo, e não entendi, mas foi empolgante. Quem lia Platão mesmo entre os adultos do meu bairro? Qual dos meus colegas de idade seria capaz de sustentar comigo uma discussão sobre a virtude na economia moral da pólis? Quem se arriscaria a uma sessão de maiêutica comigo? Quem deixaria de odiar Carlos Lacerda (estava-se em começos de 1964) para compartilhar o meu próprio ódio contra o cidadão Anito, um dos principais acusadores de Sócrates? A verdade é que me tornei um garoto imprestavelmente presunçoso, insatisfeito com os professores do ginásio, indiferente às suas lições, chegando mesmo a desafiar o de história para um debate comigo sobre o conceito de arete na filosofia grega. Um erro de cálculo. Queria impressionar meus colegas de turma, mas eles viram em mim um monstro e passaram a evitar-me. (Excluído! Que luxo! Melhor que o soneto.) Em casa, as coisas não foram melhores. Fiquei arredio, caladão, filosofante. Trancava-me no quarto para ler e escrever, comia pouco e não tomava banho, ocasionando sem saber discussões pesadas entre minha mãe e meu pai. Mas todo esse fogo de palha não durou mais do que a hegemonia de Tebas. Lembro-me que, no auge da obsessão filosófica, prometera a mim mesmo nunca mais tocar num romance, quando um belo dia meu pai me aparece lá em casa com o Pedra Bonita, de José Lins do Rego, ainda cabaço (para quem não se recorda, alguns livros não passavam pela guilhotina, e tínhamos de descabaçá-los com uma espátula ou uma faca, uma delícia). E folheando aqui e ali, detendo-me um pouco mais neste e naquele parágrafo, deixei-me insensivelmente penetrar pela estranha musicalidade dessa voz monótona e bela. José Lins tirou leite de pedra contando essa história. Depois de Pedra Bonita, a obra toda do aplicado romancista, e eu estava curado. Nem tanto, claro, mas hoje tenho o meu Montaigne para baixar a bola de vez em quando. Dizia Nietzsche que não se filosofa impunemente na velhice; na juventude, ou antes disso, diria eu, é puro veneno.
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