Um comunista que perdera o rumo da luta de classes, inda que sem o admitir, viu–se, com o tempo, sem o traço de afago no rosto; o mesmo com que, sem engulhos nas entranhas, recrutara operários para o seu Partido. Hoje, tem os cabelos brancos e finos feito um véu de musselina. Assenta no rosto, no entanto, o que supõe ser o antigo ódio à burguesia, tão ao gosto do mesmo que contraíra quando ainda moço, nos promitentes anos de militância. Não faz pouco-caso da dialética materialista, visto que seu perfil, e está certo disso, mantém–no distante, avesso às seduções do convívio com a burguesia proprietária dos meios de produção. – Parasitas! – grita de vez em quando, mesmo sem a provocação de um eventual interlocutor. O paletó de linho que usa nos ombros, um tempo raquítico, deixa–o livre para manusear os livros nas prateleiras de lojas do sebo. Não são mais raquíticos os ombros; desde que emergira da clandestinidade, sob o furor da ditadura, Proteus Argamassa – convém chamá–lo assim, porque, a exemplo de alguns, tivera a militância limitada no tempo, inda que longeva – soube recuperar a rijeza das omoplatas e do fêmur. – Proteus! Virou–se rápido, mesmo tendo reconhecido a voz esganiçada, mas já dando sinais de fraqueza, do livreiro Melquisedec. – Não me diga que tem novidades. Um sebista não tem novidades, tem raridades. Mas fale... – Apareceu–me uma raridade tão antiga quanto nova. Proteus Argamassa mirou o livreiro nos olhos, tentando distinguir alguma trapaça no cálculo de suas palavras. – Veja! – Li na juventude. Foi–me recomendado por Diógenes Arruda. Volto a ler por dois motivos: o marechal de aço não sai da memória dos comunistas, e Diógenes Arruda desfrutou do convívio com Stalin. Pagou ao livreiro. Não pôs o livro debaixo de um dos braços; o gesto seria demasiado estudantil para um homem de sua estirpe; segurou–o com a palma da mão direita fechada; a da esquerda, feito um guarda bolchevique, protegeu a primeira sem a excitação de novatos. Sentaram–se. A sombra da Praça do Sebo, com o mau cheiro vindo dos sanitários, junto com a ramagem de capim que cresce sem ordem nos jardins elevados, incita o pensamento. As paredes borradas de musgos, no prédio à frente e no vizinho, acentuam a decadência do lugar. Na marquise do Edifício Continental, o capim mistura–se ao tom róseo desbotado das paredes. Ali, Proteus Argamassa encomendara os primeiros paletós que usara, junto a costureiros não de luxo, mas acostumados a sentirem–se objetos das urdiduras de vaidade da classe média. – Foi ali que me recrutaram para o Partido – disse Proteus, apontando para o prédio, outrora reduto de alfaiates. – Quem o recrutou? – Diógenes Arruda. Recrutou–me e em seguida arrebatou Teresa Costa Rego. – Arrebatou!? – Desapropriou a bela Teresa dos salões da burguesia. Quando se levantou para sair, Melquisedec deu–lhe um exemplar antigo d'A Classe Operária. – Ah... – agradeceu Proteus. – Continua sem gostar de Tolstói? – Continuo. – Mas ele doou suas terras aos camponeses... – Mas não renunciou ao título de conde! Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.
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