O povo não se aquietou definitivamente. Se explicar o fenômeno coletivo de junho exige muita perspicácia e formação, dá–lo como acabado é temerário. Essa conclusão não condiz com o inconsciente individual e coletivo do homem. É inverossímil a crença de que atos de violência – estratégicos ou simplesmente emocionais – correspondam a um toque solerte de recolher. Famílias inteiras ocuparam as ruas brasileiras, de norte a sul, num país continental, e um fato de tamanha proporção exige profundas verificações da psicologia individual, coletiva e da sociologia. Assim como veio algo inesperado e inexplicável, foi–se. Temporariamente. As famílias que deixaram suas casas e tomaram os espaços públicos fizeram política em seu sentido mais elevado. Transferiram–se dos lares para a polis. As causas foram profundas, históricas. Resumir um movimento com esse significado a uma pretensão básica de alguns centavos no preço das passagens do transporte é ignorar séculos de análise antropológica, desde seu princípio, especialmente no século XVIII e XIX na Alemanha, quando Jung foi o primeiro a falar no inconsciente coletivo – “ethos” de um povo ou coisa parecida –. É possível questionar o conceito, porém não se pode negar que uma população massiva tende a não deixar adormecidos “ad aeternum” seus anseios comuns. Em geral, essas propensões são trabalhadas por líderes oposicionistas e fatos históricos marcantes são a causa que desencadeiam as movimentações e os protestos. No Brasil, o quase incrível foi seu exsurgimento de brumas enevoadas, sem líderes e sem fatos. De um momento a outro nossas paisagens urbanas, não só das capitais, foram açambarcadas por governados que, sem sombra de dúvida, foram impulsionados por um desconforto pouco explicitado, mas radicados nas profundezas do respectivo inconsciente coletivo. O mal estar psíquico, individual ou coletivo, não desaparece como por encanto. E tampouco por medo. O homem e os homens pensam voar longe, crescer até as alturas, e, para tanto, fincam raízes profundas. No momento em que as raízes se fragilizam, são procuradas as soluções, sem as quais vem o estremecimento, a queda, a derrubada de legítimas intenções individuais e coletivas. O citado psicólogo e filósofo germânico, Karl Gustav Jung, bem observou essas circunstâncias: da tomada consciência individual de si mesmo e da consciência coletiva dos grupos sociais. Do fim da alienação cotidiana. “Como não sou profeta, é impossível dizer–lhes para onde caminha nossa época. Mas sei da experiência com muitas pessoas de nosso tempo que existe uma tendência instintiva bem declarada de reconduzir o indivíduo à consciência de si mesmo. (...) Por isso mesmo vemos por toda parte o flamejar de uma emocionalidade mística que foi declarada extinta desde a Idade Média. Às nações acontece o mesmo que aos indivíduos; quando o indivíduo cresce demais para o alto, as suas raízes vão demais para o fundo, isto é, após certo tempo também sua própria sombra vai alcançá–lo em seu rápido progresso, quando então cada qual encontrará o suficiente para fazer em casa. No indivíduo chamamos isso de conflito, na nação chama–se guerra civil ou revolução.” (“Cartas”, vol. I, pg. 144). Segue–se que as manifestações públicas nunca dantes vista na história deste país, em junho passado, foram esboço de inconformismo, de pleitos e, conforme o andar da carruagem, de conflitos ou até mesmo, como menciona o mestre suíço, de revolução. Esse esboço entrou num processo de hibernação. Conserva–se latente. Escaramuças violentas não são capazes de deter a vontade irrefreável de um povo. O povo brasileiro tem razões racionais de sobra para estar incomodado. Os eventos esportivos temerários dão–lhes causas suficientes. E, ainda que assim não seja, seus instintos emocionais não foram aplacados. Daí porque discordamos plenamente dos que consideram junho um mês incompreendido e superado. Seus dias significativos e nebulosos ainda integram as entranhas do povo brasileiro. Seu atual estado pulsátil tende a despertar a nação momentaneamente adormecida, até porque nossas esperanças, demagogicamente propagandeadas em passado recente e no momento eleitoral, despojadas de fundamentos sólidos, desmancham–se crescentemente sob as mais obscuras perspectivas políticas. 2014 ou os dias que lhe seguirem nos reservam fortes surpresas e desafios. Nota do Editor: Amadeu Roberto Garrido de Paula é advogado especialista em Direito Constitucional, Civil, Tributário e Coletivo do Trabalho e fundador da Garrido de Paula Advocacia.
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