Lembro da Venezuela ensolarada, com o povo nas ruas só a caminho do trabalho ou a passeio. Era dezembro de 2010 quando estive em férias na linda Caracas, com seu teleférico que vai a uma altura impressionante, uma metrópole latino-americana emoldurada por seus morros e próxima ao mar do Caribe. Um povo alegre andando nas ruas, muitos vestindo camisetas dos seus times de beisebol assim como usamos dos nossos de futebol. Nas ruas é muito popular a deliciosa chicha (diga “txitxa”) de arroz, cujo sabor lembra o de um arroz de leite, só que é batida no liquidificador junto com gelo. Uma receita de origem indígena que me fez abandonar o milk shake enquanto estive lá, pois tinha encontrado algo bem melhor. Essas lembranças me vieram à mente com as notícias de escassez de produtos básicos na Venezuela. Agora, estudantes e milhares de pessoas vão às ruas não a passeio, mas em protestos contra o governo. Aqui, à distância, tento imaginar como estão se sentindo, com seu país em crise econômica. E fico com a impressão de que os comentários sobre a Venezuela que se ouve por aqui, carregados de ideologias radicalmente pró ou contra o chavismo – reproduzindo a divisão maniqueísta que está ocorrendo lá mesmo – tem pouca empatia com a realidade da população venezuelana. Seria interessante aplicarmos os mesmos critérios de julgamento que temos para nosso próprio país, para compreendermos o país dos outros. Aqui no Brasil muitos intelectuais de oposição atacam a bolsa família e desqualificam o governo e o próprio povo, dizendo que este está “pensando com a barriga”, mas alegam compreender e se dizem solidários com os venezuelanos. Por outro lado, os intelectuais brasileiros governistas defendem os programas sociais e a estabilidade econômica aqui, mas não admitem que a crise de abastecimento venezuelana seja um motivo para o povo ir às ruas, pois tudo seria uma mera manipulação imperialista como alega o governo de lá. Acostumados que somos (por nossa longa história de colonização cultural) a achincalhar nosso próprio país, é bom saudarmos o fato do Brasil ter pleno emprego e estabilidade econômica, bem como ter tirado milhões de pessoas da linha da miséria, com os programas sociais. Claro que isso não pode ser motivo de nos acomodarmos, mas é uma demonstração de maturidade política do nosso país. Na Venezuela hoje não há independência entre os poderes, o governo pode decretar “leis habilitantes” que não precisam de aprovação do Congresso para entrar em vigor. Também não há democracia na China, mas sua economia vai bem. No Brasil temos uma democracia estável, em que o governo faz um discurso dito de “espírito republicano”, de colocar os interesses da sociedade acima do dos partidos. Mesmo que a prática possa ser diferente da teoria, esse discurso difere do modelo chavista de inspiração maniqueísta, do bem contra o mal, do bolivarianismo versus imperialismo. Mas a Venezuela não é um país pobre, muito pelo contrário, é um dos países mais ricos da América do Sul com um fantástico ingresso de petrodólares na sua economia. Quer dizer, estão longe de ser dependentes ou vítimas de algum boicote imperialista. Como eles conseguem desperdiçar tudo isso, gerindo tão mal o próprio país? O que ouvi quando estive lá, é que se trata de um governo populista que intervém nas empresas mas não é um bom gestor, administrando mal onde interfere. O povo pensa com a barriga, todos pensamos, mesmo dizendo que “a gente não quer só comida”, como os Titãs. E a vida perde o gosto, quando fica sem chicha de arroz. Nota do Editor: Montserrat Martins, colunista do Portal EcoDebate, é psiquiatra. Fonte: Portal EcoDebate (www.ecodebate.com.br)
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