A ditadura não aconteceu, segundo a minha vó. Desde 64 que o meu vô dava umas pipocadas no barraco. Agora então, coitado, que deus o tenha. Segundo ela, dona Adelina, assim como alguns milicos daquela época, que ainda estão vivos graças a técnicas de animação suspensa subsidiadas por aposentadorias estratosféricas, também não existiu tortura. No máximo uma vizinha que ouvia o dia inteiro um disco do Caetano Veloso arranhado. Mesmo gagá, minha vovó lembra muito bem dos famosos suicídios com dois tiros na nuca, muito comuns naqueles dias, assim como os enforcamentos com linha de nylon e barbante nos porões do dodói–codi. Eu que já não sou tão novo assim, lembro do retrato do Figueiredo na cantina, no banheiro, na diretoria, na sala de aula, no pátio e na quadra da escola, o que assustava bastante, não pela repressão e censura que aquela cara feia representava, mas porque era muito feia mesmo. Também há de se estranhar, que muitas pessoas reclamem que seus parentes queridos tenham desaparecido. Mais uma vez, minha vó sai em defesa dos milicos, atestando que meu vô também sumia de casa, às vezes por mais de meses, e quando voltava não ostentava nenhum sinal de tortura, no máximo uns chupões no pescoço e marcas de batom na cueca. Tento argumentar com vovó, que realmente muitos sumiram, foram assassinados, arrancados de seus lares e nunca mais apareceram, nem vivos, nem mortos. Conto a história do Rubens Paiva, mas ela não me dá atenção e assoviando a musiquinha do Getúlio, diz que queria ter sido a Virginia Lane e dado uma catracada com o velhinho. O coro come quando alguém comenta perto dela a influência nefasta dos EUA sobre nós naquela época. Ela comenta que se não fosse os EUA, não teríamos cinema, Disney e pipoca de micro–ondas e arremessa um de seus discos da Carmem Miranda ou o boneco do Zé Carioca na cabeça do infeliz. Ela se diz fanzoca desse menino, o Bolsonaro, enquanto enxuga as lágrimas num lencinho com as cores do Brasil, e agradece a Deus por ter visto a copa de 50 e se tudo der certo ver essa agora, que ela sempre fala que vai ser o maior espetáculo da terra, graças ao nosso presidente, o Médici, ou o Castelo, ela tá na dúvida. Peço bença e me despeço da minha vovó, enquanto ela contempla, do alto de seus quase 90 anos, o horizonte feliz de sua esclerose. Só lamento mesmo quando vejo um monte de idiotas celebrando na internet e por aí, os 50 anos dos anos mais negros das nossas vidas. Tem que ser muito idiota mesmo. Tchau que eu vou mudar pra Marte.
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