Minha geração assistiu de fraldas e calças curtas aos principais acontecimentos dos anos 1950, entre eles, num âmbito mais bairrista e sentimental, sem cuidados de exatidão histórica, a discreta e melancólica despedida das marias-fumaça que passavam literalmente na porta de minha avó materna, no Irajá, fascinando o endiabrado garoto de cabelos vermelhos, que por sinal nunca pôde entender muito bem por que os adultos de casa não davam a menor atenção àquelas belas matronas a vapor, com seus penachos fumarentos de prata envelhecida e seu lamentoso apito. Já o garoto endiabrado - o leitor não perde por esperar - largava tudo o que estivesse aprontando contra os vizinhos e corria até a passagem de nível da rua Carolina Amado, assim que lhe alcançavam o apito e o matraquear resfolegante de alguma delas chegando à estação de Irajá, onde engolia e desengolia os seus passageiros. Lá ficava ele, sereno, de calças curtas, sem camisa, à beira da linha férrea, aguardando a aproximação dessa outrora grande máquina do mundo. Próximo à passagem de nível, o ciclope de um olho só lançava o seu primeiro grito, demarcando território, e começava a ganhar impulso. O garoto enfiava rapidamente a mão no bolso, puxando o estilingue e uma bola de gude, e atirava, trêmulo de emoção. Nunca acertou o grande olho polifêmico, mas chegava a ouvir o som da bolinha (ou do bolão, dependendo do humor ocasional) espatifando-se contra a negra carapaça de ferro, sem maiores conseqüências. Para a maria-fumaça, bem entendido. O pequeno Davi sem causa sempre ganhava uns bons cascudos depois de cada embate. Muitos, por sinal, pois levou cascudos de todos os adultos da casa, que se revezavam na aplicação do castigo. Mas elas se foram, inapelavelmente. Resta-me agora apenas este papel de parede na telinha do computador, minha madalena proustiana - um trecho da Rio D’Ouro entre colinas, e uma criança de short e camiseta à porta de um casebre, vendo o trem passar. Tem muita sorte essa criança eterna do quadro.
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