Muito se debateu, muito se discutiu e, ao final, a “culpa” por tamanho ato de barbárie foi atribuída às péssimas condições do nosso sistema carcerário e ao descaso com o que o governo lida com essa questão. Entretanto, ao menos com relação à implementação de melhorias sensíveis no sistema prisional, pouco ou nada de concreto foi feito desde então. Porém, se é certo que aqueles presos tiveram as péssimas condições carcerárias como “desculpa” para justificar tamanha barbárie, fato é que, de uns tempos para cá, a prática de atos igualmente bárbaros e cruéis contra seres humanos deixou de ser exclusividade de presos e bandidos. De fato, para espanto e perplexidade de boa parte da sociedade, a prática de linchamentos, espancamentos, humilhações e desrespeito à dignidade humana por pessoas absolutamente comuns tem proliferado país afora. Hoje, já não é mais preciso aguardar rebeliões em presídios para se presenciar atos de barbárie praticados por seres humanos contra seus semelhantes. Lamentavelmente, a ideia primitiva de que a “justiça é feita pelas próprias mãos” está ressurgindo com uma força incrível. Recentemente, já presenciamos desde adolescentes infratores presos a um poste com um cadeado de bicicleta até a morte, por espancamento, de uma dona de casa que foi confundida com suposta aliciadora de menores. E, ao que parece, o fenômeno é endêmico. Infelizmente, a cada dia que passa, fica mais difícil recolocar o “inconsciente coletivo” nos eixos. Sem tentar esgotar as causas do problema, mas, buscando auxiliar o seu entendimento, acredito que há três fatores básicos para explicar tamanho retrocesso no comportamento da nossa sociedade: – Perda dos freios morais; – O descrédito da população nas Instituições (Poder Judiciário, polícias em geral); – A ideia de que vivemos no “país da impunidade”. Pois bem, a nossa Constituição Federal estabelece, logo no seu artigo 1º, que a “República Federativa do Brasil, (...), constitui-se em Estado Democrático de Direito”, ou seja, o sistema político brasileiro “rege-se por normas democráticas, com eleições livres, periódicas e pelo povo, bem como o respeito das autoridades públicas aos direitos e garantias fundamentais”. Dentro dessas premissas, era de se esperar que nossos representantes políticos exercessem o poder que lhes é conferido por meio do voto popular para e pelo povo. No entanto, a partir do instante em que o cidadão percebe que o representante que escolheu exerce o poder apenas para si mesmo, é evidente que surgem o descrédito, a desconfiança e a revolta. Ao ver que seus representantes não respeitam as leis como deveriam, o conceito de “moralidade pública” sucumbe, desaparece. Os freios morais simplesmente deixam de existir, afinal, sem aqui pretender generalizar (afinal, ainda existem bons políticos), se aquele que está lá para representar o povo não atua com honestidade, por que a população permanecerá honesta? Soma-se a isso a morosidade dos processos, as dificuldades que a polícia judiciária encontra para resolver e apurar os crimes, a própria burocracia do nosso sistema jurídico e, pronto, temos uma situação absurda que chega a estimular o cidadão a praticar crimes. O brasileiro não acredita mais no Poder Judiciário e nem nas forças policiais. As Instituições de controle da ordem estão, para muitos, falidas, desacreditadas. Prova disso é que, não raro, temos a notícia de que numa determinada comunidade, as pessoas acabam sentindo-se mais seguras ao lado dos traficantes que lá habitam do que com a presença ostensiva da polícia. Nesse ponto, chega-se a terceira causa do ressurgimento da “justiça pelas próprias mãos”. É evidente que, caso as penas aplicadas fossem integralmente cumpridas, caso o criminoso sempre respondesse pelo crime que praticou, certamente que não teríamos a ideia de que vivemos no país da impunidade. Ainda que essa ideia não seja, de fato, totalmente verdadeira (afinal, temos uma população carcerária de quase 500 mil presos), fato é que, enquanto a grande massa social continuar acreditando que o crime compensa e que ninguém é punido neste país, o controle da criminalidade e, infelizmente, a recuperação do respeito à ordem pública, serão cada vez mais difíceis. Assim, o cidadão de bem eventualmente atingido pela prática de um crime não pensará duas vezes em responder, na mesma intensidade e sem nenhum pudor, com violência à violência que o vitimou. Afinal, esse cidadão estará apenas aplicando a “pena” que, segundo a sua íntima e torta convicção, o Estado será incapaz de aplicar. O revide e a vingança – nem sempre proporcionais à ofensa sofrida – fazem parte do instinto humano. O Estado, visto como um “terceiro” alheio à discussão, que atua com imparcialidade e que é o único legitimado a exercer o “direito de punir”, surgiu, ao longo da evolução humana, justamente para tentar coibir esse instinto. Porém, a partir do momento em que o Estado e seus representantes perdem a credibilidade, é evidente que o cidadão voltará à fase da “justiça pelas próprias mãos”. Trata-se de um círculo vicioso perigoso, que coloca em risco o próprio Estado Democrático de Direito. Cabe ao Poder Público recuperar a sua “boa imagem” e impor-se novamente à população. Contudo, não será mediante a invasão de morros, a criação de UPPs ou com violência que o Estado recuperará a sua credibilidade. De fato, o ressurgimento do Poder Público passa, num primeiro momento, pela implementação de políticas públicas eficientes para melhorar o sistema educacional do país, e, num segundo momento, pelo efetivo combate à corrupção e, principalmente, pela diminuição radical dos gastos públicos. Em suma, se o Estado realmente pretende recuperar a sua credibilidade, é preciso, primeiro, reorganizar-se internamente e, mais do que isso, cortar na própria carne, doa a quem doer. Nota do Editor: Euro Bento Maciel Filho é advogado criminalista, mestre em Direto Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e sócio do Escritório Euro Filho Advogados Associados. E-mail: eurofilho@eurofilho.adv.br.
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